Livros
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Por Talita Duvanel — Rio de Janeiro

Na edição do GLOBO de 23 de maio de 1939, noticiava-se uma iniciativa de erguer um busto no bairro da Glória em homenagem à escritora Júlia Lopes de Almeida, que morrera cinco anos antes. “Ninguém tem o direito de a esquecer”, disse a escritora Iracema Guimarães Villela na reportagem. Mas esqueceram — por boa parte do século XX e início do XXI. Agora, no entanto, ela está no centro de um movimento que não quer eternizá-la em pedra, mas naquilo que ela mais sabia fazer: livros.

No 160º aniversário de seu nascimento, editoras como a Hedra, a Janela Amarela e a Vermelho Marinho estão reeditando sua obra. A família também organiza a exposição “Júlia Lopes de Almeida no Museu Histórico da Cidade: O retorno de um fenômeno literário”, na Gávea, no Rio, de 17 de setembro a 14 de janeiro, em homenagem à carioca, uma das escritoras (entre homens e mulheres) de maior sucesso de crítica e público de sua época.

Júlia escrevia sobre temas que até eram tratados por outras mulheres — mas conquistou mais espaço do que as outras. E algumas de suas ideias não são de se jogar fora: “...os casamentos deveriam ser feitos, em qualquer época da vida, por contrato temporário, de um certo número de anos: cinco, dez, doze... Quem se desse bem renovaria o contrato, tal e qual como nas firmas comerciais; e quem não tivesse encontrado o seu ideal esperaria pacientemente a terminação do primeiro prazo e serenamente, legalmente, sem escândalo nem discussão, diria adeusinho a um período da vida em que não tivesse encontrado a felicidade sonhada, e trataria de pensar em outro rumo”, escreve ela em “Nessa mesma tarde”, do livro “Eles e elas” (de 1910, relançado pela Janela Amarela).

Nesta mesma obra, reunião de crônicas publicadas no jornal O Paiz, Júlia alterna narradores masculinos e femininos. Quando escreve com a voz deles, usa a pena do deboche, com o tom aparvalhado e amedrontado com possíveis perdas de privilégios. Na voz delas, o discurso franco é sobre vontades e insatisfações como, por exemplo, as demandas do casamento. E nos contos de “Ânsia eterna” (1903), narra com crueza diversos tipos de violência contra a mulher: de abuso sexual de menor a abandono numa gravidez indesejada, passando pelo assassinato de uma filha por um pai.

Por aí, dá para entender sua popularidade.

—Até a década de 1930, Júlia era uma das autoras mais vendidas do Brasil. Depois, foi esquecida — diz Tomaz Adour, editor da Vermelho Marinho, que lança, no site Catarse, um financiamento coletivo para o box “Julinto”, com três livros. Um deles é “Dona Júlia”, de Filinto de Almeida, um livro de poemas até inéditos, que ele presenteou os amigos depois da morte da mulher.

Edições de "Ânsia Eterna", "A Casa Verde" e "Dona Júlia", da editora Vermelho Marinho — Foto: Divulgação
Edições de "Ânsia Eterna", "A Casa Verde" e "Dona Júlia", da editora Vermelho Marinho — Foto: Divulgação

Mas como um dos maiores sucessos literários do Brasil, que escrevia crônicas, contos e romances, muitos deles abolicionistas e feministas, simplesmente desapareceu por tanto tempo, sem ganhar sequer uma rápida menção nos currículos de literatura das escolas de várias gerações de hoje?

Anna Faedrich, professora de literatura brasileira da UFF e organizadora dos debates da exposição no Museu Histórico da Cidade responde sucintamente: questão de gênero. A história da literatura brasileira foi escrita por homens, que deixaram mulheres como Júlia — e tantas outras — de fora.

— É um processo comum com as escritoras desse período: depois que morrem, gradativamente vão sendo esquecidas, ao ponto de hoje tentarmos reinseri-las no cânone da literatura — diz Anna, que também organiza a reedição da obra de Júlia, a partir de setembro, pela editora Hedra. — “Ânsia eterna” traz questões da violência de gênero, um tema em pauta atualmente. Fala de feminicídio quando o termo nem existia.

'A família Medeiros', editora Hedra — Foto: Divulgação
'A família Medeiros', editora Hedra — Foto: Divulgação

Nascida no Rio em 1862, filha de portugueses, Júlia passou a infância e parte da juventude em Campinas. A Gazeta de Campinas foi o jornal que a acolheu por incentivo do pai, quando tinha 19 anos. De lá até sua morte, em 1934, foram diversas crônicas e folhetins, peças de teatro, ensaios e romances, tudo muito bem aceito pela intelligentsia (leia-se homens) cariocas... até tentar um espaço na Academia Brasileira de Letras (ABL). Aí já seria um passo grande demais para a época. Júlia participou das sessões preparatórias de fundação da instituição, em 1896, mas ficou fora da lista de fundadores. Entrou seu marido, o poeta e jornalista Filinto de Almeida.

— Ela é um nome importantíssimo na literatura. Quis entrar na Academia, mas não conseguiu — diz Nélida Piñon, secretária-geral da ABL. —Havia o pretexto de que, como era uma instituição para “brasileiros”, o machismo interpretava que “brasileiros” eram só os homens.

Júlia Lopes de Almeida e Filinto de Almeida — Foto: Reprodução Ana Branco
Júlia Lopes de Almeida e Filinto de Almeida — Foto: Reprodução Ana Branco

Dividida entre a carreira, a casa e os quatro filhos

O sucesso de vendas de Júlia na sua época dá para ser medido por um dos casarões em que ela morou em Santa Teresa. O engenheiro Cláudio Lopes de Almeida, de 92 anos, neto da escritora, conta que a propriedade foi adquirida com parte dos lucros de sua obra.

— A casa foi comprada com um pouco do dinheiro do Filinto e com o que ela ganhou escrevendo “A falência” — conta Cláudio, que, juntamente com a mulher, a atriz Beth Araújo, idealizou a exposição na Gávea.

Sobreviver de literatura e, ao mesmo tempo, cuidar da casa e de quatro filhos foi a receita para a aceitação de Júlia pela sociedade carioca.

O tinteiro usado por Júlia Lopes de Almeida — Foto: Ana Branco/Agência O Globo
O tinteiro usado por Júlia Lopes de Almeida — Foto: Ana Branco/Agência O Globo

— Ela construiu uma imagem pública de mãe que consegue conciliar o tempo com a carreira de escritora. E isso a possibilitou circular — diz a historiadora e autora de “A escrita feminista de Júlia Lopes de Almeida”, Gabriela Trevisan, ressaltando as ambiguidades da história da escritora. —Foi alguém que escreveu manuais de comportamento sobre o espaço doméstico, mas também contos como “Os porcos” (em “Ânsia eterna”), com críticas a uma gravidez indesejada.

Júlia entendia o funcionamento do patriarcado e sua lógica. Se ela o ameaçasse logo de cara, não ia ter o espaço que merecia. Sua estratégia de aceitação começava pelo título. Quem diz que “A família Medeiros” é um romance abolicionista só pela capa? Ou que “Ânsia eterna” tem um conto sobre um padrasto que estupra a enteada?

— Em 1924, Ercília Nogueira Cobra publicou um ensaio chamado “Virgindade anti-higiênica”. Chrysanthème também tinha títulos superprovocativos. Aí, a crítica, feita por homens, já falava mal, muitas vezes sem ler — diz Anna Faedrich. — Júlia estava consciente de como tinha que agir.

Nesse contexto, reeditar Júlia — e suas contemporâneas mais aguerridas, ainda menos prestigiadas — é uma tarefa a que muita gente tem se proposto. Carolina Engel, da editora Janela Amarela, fundada em 2021, é uma delas. Já são seis livros da carioca no catálogo, e “Silveirinha” sai em agosto.

— Como todo clássico, reler esses livros é reler a nossa história, ainda que um pequeno estrato, já que dão um foco numa determinada parte da sociedade. O que melhoramos? Ainda há chance pra gente? —diz Carolina, que também publicou “A divorciada”, de Francisca Clotilde, e lança em breve obras de Cândida Fortes Brandão.

'A silveirinha', da Janela Amarela — Foto: Divulgação
'A silveirinha', da Janela Amarela — Foto: Divulgação
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