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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Como escrever a última frase de “Memórias póstumas de Brás Cubas” — “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” — sem ofender ninguém (quem tem filhos, quem queria tê-los, pais por adoção etc.) e sem uma palavra difícil como “legado” ou baixo astral como “miséria”. Esta seria a proposta de um projeto intitulado Luta de Clássicos, que visa a reescrever obras de José de Alencar e Machado de Assis e torná-las mais acessíveis a quem tropeça no vocabulário oitocentista dos autores. Em “A vida futura”, novo romance de Sérgio Rodrigues, tal notícia chega ao céu dos escritores e, estupefatos, Alencar e Machado descem ao Rio de 2020 para puxar o pé da professora que inventou de reescrevê-los.

De volta ao mundo dos vivos, os dois defuntos penam para entender a linguagem neutra e o jargão identitário. “Todes?! Seria um deus nórdico?”, confunde-se Machado, que descobre que o comportamento das elites não mudou tanto desde que ele desencarnou. E que o adultério (ou a “cornitude”, na palavra dele) ainda é tema literário. Enquanto Alencar resiste à acentuada sensibilidade contemporânea, o autor de “Dom Casmurro” reflete sobre a própria negritude e se encanta por uma pessoa não binária e negra, moradora da Rocinha, chamada Mar (ex-Mariana).

Sérgio Rodrigues faz lançamento do livro no próximo sábado, às 17h, na Megafauna, em São Paulo, em conversa com a escritora Noemi Jaffe. Juntamente com “A vida futura”, lança nova edição do livro de contos “O homem que matou o escritor”, sua estreia na ficção.

Em entrevista ao GLOBO, o autor avalia que a linguagem neutra terá fôlego curto e explica por que Machado resiste a ser bandeira usada por militância.

Como foi escalar Machado como narrador de “A vida futura”?

Machado de Assis não se copia. Se a proposta não fosse fazer comédia, estaria fadada ao fracasso desde o início. Me interessava era brincar com a linguagem, a ironia e os truques machadianos para falar do Brasil de hoje. No meu livro anterior, “A visita de João Gilberto aos Novos Baianos”, tem um conto que se passa na cabeça de Capitu na noite de núpcias, “A fruta por dentro”. Por que não entrar na cabeça do criador de Capitu?

Temas machadianos estão presentes em “A vida futura”, como a reação da elite a intrusos, a figura do agregado e o adultério. Há também assuntos contemporâneos, como as milícias. Como o olhar machadiano nos ajuda a encarar os dilemas atuais?

O olhar machadiano sobre as relações sociais no Brasil já foi incorporado não só à literatura, mas também a outros campos do conhecimento, como a sociologia. Machado deixou claro quais são nossos vícios de origem, que continuam firmes e fortes apesar de terem sido denunciados pela obra dele. Ele mostra como alguns dos nossos nós sociais permanecem atados.

Você já criticou a maneira como clássicos da literatura, como José de Alencar e Machado, são apresentados nas escolas. Como você conheceu esses autores?

Eu me lembro de ser obrigado a ler José de Alencar na adolescência e detestar. Quando li Machado aos 12 anos, achei muito chato. Não era hora de ler aquilo. Para minha sorte, eu já conhecia o prazer que os livros proporcionam. Tirando o prazer da equação, fica difícil convencer a garotada que vale a pena perder tantas horas com um livro. No final da adolescência, voltei a Machado e comecei a entender e curtir. De Alencar, ainda não gosto, mas respeito. Não sou louco de não reconhecer a importância de um autor que ajudou a abrasileirar a língua literária.

Alencar acha a linguagem neutra “ridícula” e Machado diz que é melhor adiar “qualquer juízo peremptório para depois de entender ao menos meio palmo” do assunto. Você concorda com Machado de Assis?

É fácil condenar a linguagem neutra. Explicar que em português o gênero masculino faz o papel do neutro é gramática básica, mas é insuficiente para dar conta do que está acontecendo. A luta é mais política do que linguística. Machado encara a questão com distanciamento irônico e tenta compreender, a ponto de se encantar por Mar, uma pessoa não binária negra da Rocinha. Ele não fica em cima do muro. Já Alencar é mais tosco. Ele era um escravocrata.

Nem Machado entende expressões como “grupos interseccionais”, “epistemologia decolonial” e “todes”. A militância identitária deve maneirar no jargão para não tornar a linguagem inclusiva excludente?

Não se sinto em condições de dar conselhos a militância nenhuma. Criar ruídos linguísticos gera antagonismo, mas também desperta consciências. Mas diminuir o jargão seria bom para todo mundo, não só para a militância dita identitária.

O que acha da linguagem neutra como recurso literário?

Como escritor, não acho que eu vá usá-la para além desse livro. Já estou velho demais. Como intervenção política, a linguagem neutra é válida. Como proposta gramatical, não vejo futuro. A maior parte dos brasileiros nem sabe o que é isso. A intervenção militante pode até estigmatizar uma palavra, mexer no plano do vocabulário, mas não em estruturas gramaticais que estão profundamente enraizadas na língua. Um escritor que adotar linguagem neutra como regra corre o risco de escrever um livro que ficará datado rapidamente.

Mar diz que é preciso afirmar tanto a negritude de Machado quanto o esforço que ele fez para embranquecer. Do contrário, perdemos a “fresta”, o “entrelugar”, de onde vem a genialidade dele. Que “fresta” é essa?

Machado era um escritor sem cor que, com razão, foi reivindicado pelo movimento negro, é o orgulho da raça. A genialidade dele é inexplicável. Como um dos maiores escritores do mundo em sua época pode ter nascido pobre em uma sociedade tacanha e periférica, imitadora de modas europeias? Machado vivia em um entrelugar. Não era nem um pobre fodido nem era da elite. Ocupava uma posição instável em uma sociedade escravocrata. Isso talvez tenha lhe dado uma visão mais nuançada e ampla do que é o Brasil. Muito mais do que ele se fosse um filho da elite com sensibilidade social.

Mas ainda assim é difícil transformá-lo em bandeira?

Machado se presta mal a ser bandeira. É justo que ele seja reivindicado como negro, porque ele de fato era. Mas isso vai trazer alguns incômodos, porque ele não era Luís Gama. Não lutou pela libertação dos escravos. Machado é muito sutil, inteligente, irreverente e contraditório demais para se prestar ao papel de estandarte político. Isso é mérito dele. Em geral, heróis de causas políticas são mais chapados.

Um personagem do livro diz que não se pode esperar “potência” de “escritores cis eurobrancos”. Você não teme receber essa crítica ao abordar assuntos tão espinhosos com humor?

Sim, mas quem ler o livro vai ver que a coisa é tratada com cuidado e carinho. Quis trazer essas questões para a literatura com um sorriso irônico machadiano, sem condenar ou abraçar nada acriticamente. Buscar a fresta. Tenho uma fé antiquada na literatura. Como escritor cis hétero branco do Jardim Botânico, posso criar uma personagem negra, não binária da Rocinha, desde que meu talento e competência permitam. Se pudéssemos falar só de nós mesmos, qual seria o sentido da literatura?

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