Livros
PUBLICIDADE

Por Luciana Araujo Marques Especial Para O GLOBO


Autora de 'Flâneuse', a americana Lauren Ekin vive em Paris — Foto: Divulgação
Autora de 'Flâneuse', a americana Lauren Ekin vive em Paris — Foto: Divulgação

A foto que ilustra a capa de “Flâneuse”, de Lauren Elkin, pode ludibriar. Nela vemos uma jovem com um semblante apreensivo passar por vários homens. Não resta dúvida de que ela é alvo de assédio. Então podemos deduzir que o cerceamento dos passos femininos nos espaços públicos será o principal tema do livro. Entretanto, ainda que abordem essa dimensão opressora, suas páginas revelam sobretudo uma ode à presença imperiosa e livre delas nas ruas, a despeito de terem sido apagadas da história das cidades, confinadas no imaginário ao ambiente doméstico e dos riscos associados a quando saem sozinhas por aí.

Lauren Elkin mescla as memórias de suas próprias andanças pelas diferentes localidades onde viveu, “por razões de trabalho ou de amor”, a uma reconstituição histórico-cultural que se alia às leituras que faz de Jean Rhys, Virginia Woolf, Sophie Calle, Martha Gellhorn, George Sand (pseudônimo masculino), Joan Didion, Agnès Varda.

A escritora e crítica — que nasceu em Nova York e mora em Paris desde 2004 — perfaz desse modo o próprio caminho e o daquelas que o atravessaram com suas obras, decisivas na constituição de um olhar errante e, por isso mesmo, avesso a qualquer apreensão estática sobre ser mulher e, como tal, reconhecer-se estrangeira em certos espaços.

Quando Elkin traz à tona sua própria jornada entre as diferentes cidades, divididas em três continentes, é confessional, mas sem nunca perder de vista o argumento que a une às demais mulheres de quem trata no livro e aquelas que essas evocam. Volta-se para dentro e para fora em cada um desses lugares como pontos de partida e destino e vice-versa. “Como tínhamos um excedente de identidades culturais, era como se não tivéssemos nenhuma”, escreve ela sobre sua origem ítalo-judaica-irlandesa.

O “flâneuse”, que lemos no título, mais do que se contrapor ao pisado e repisado significado do “flâneur”, como o indivíduo masculino que se mistura à multidão enquanto caminha a esmo, busca chamar a atenção para os desvios dos caminhos estabelecidos para elas, rumo à direção de territórios próprios. Assim, a autonomia que se constrói como autoria em oposição ao anonimato, mesmo quando se está entre milhares de manifestantes ou imersa na exploração solitária de um beco, é bastante ressaltada nas aproximações com as obras das criadoras em questão e com ela mesma.

A relação com o sexo oposto não passa batida. Se há todo um amontoado de histórias de homens que perseguem e mulheres que são perseguidas, em Veneza, Sophie Calle muda essa posição. “Uma mulher seguindo um homem é subserviente. Não é? Mas um homem seguindo uma mulher é uma busca apaixonada. A própria Calle é seguida por homens ao longo de toda a “Suite Vénitienne”; alguns falam com ela, outros não; alguns são ameaçadores, outros não. De modo geral, ela gosta da atenção.”

Cúmplice dessa necessidade de ser vista ou não, Elkin nos mostra como, ao se colocar no encalço do tal homem, é a artista quem se “inscreve por toda a cidade”, “quem escolhe deixar as escolhas a um mero rosto, na busca de algo que não sabe nomear”.

Elkin demonstra indignação com o fato de, em “Paris é uma festa”, Ernest Hemingway tratar tudo o que vê como posse, o que inclui as mulheres que por ele passam. Se para o grande escritor ver é ter, ela trava com a capital francesa uma relação de pertença. Nesse sentido, o da narrativa que Elkin constrói como série de encruzilhadas, o casamento do célebre escritor com Martha Gellhorn surge como embate para além do anedotário que rendeu filme, visto que ela, com seus artigos, converteu a flânerie em testemunho, enquanto ele a questionava em telegrama enviado ao front italiano em 1944: “Você é correspondente de guerra ou mulher na minha cama?”

Na toada de tais páginas, em que as mulheres parecem sempre inverter o jogo, a imagem da capa ganha uma outra camada quando passamos a conhecer, quase ao final do livro, a perspectiva daquela que foi fotografada, e por quem, na Florença de meados do século XX. Trata-se de Nina Craig pelas lentes de Ruth Orkin. Segundo ela, em entrevista concedida seis décadas depois do clique, o foco naquele instante era a independência e a inspiração, o brincar com o comportamento esperado das mulheres.

De todo modo, para quem faz essa leitura a partir do Brasil, fica a sensação de que precisamos ainda caminhar muito para chegar lá, em qualquer lugar, a salvo, mesmo em bolhas como as das garotas de Ipanema no calçadão.

Luciana Araujo Marques é jornalista e doutoranda em Teoria e História Literária

Mais recente Próxima
Mais do Globo

Além das boas lembranças, podemos trazer inquilinos clandestinos como: bactérias, fungos, insetos e outros animais na bagagem

Voltou de viagem e vai desfazer a mala? Saiba por que você não deve fazer isso em cima da cama, segundo médicos

Sempre me pareceu muito mais difícil escrever para crianças, leitores terrivelmente atentos, inteligentes e implacáveis. Sei do que falo

Seleção do companheiro de chapa será uma das decisões mais importantes da democrata na corrida pela Casa Branca

Eleições nos EUA: Kamala deve escolher vice-presidente neste fim de semana; conheça os cotados

Britânico 'morreu' no exterior por menos de meia hora, mas sobrevive

Estudante universitário tem sensação de morte durante 25 minutos após queimadura de sol

Velejador, que estreia em Paris-2024 neste domingo, conta como conciliou medicina e kitesurf

Bruno Lobo: 'As dificuldades me davam mais força'

Iniciativa opositora de apresentar contagem paralela impede a legitimação de resultado oficial do conselho eleitoral; reversão, contudo, dependeria de pressão interna no país

Análise: Apesar de oposição mobilizar comunidade internacional contra Maduro após contagem de votos, desfecho depende de militares

Em 'Cabeça de galinha no chão de cimento', Ricardo Domeneck rememora figuras antigas, presentes em seu imaginário, para parar o tempo

Crítica: poeta volta à infância no interior para espiar paisagens esquecidas e rever pequenos pavores

Segundo os cientistas, além de um maior conhecimento sobre o planeta, o estudo permite também lançar luz sobre a evolução planetária e a estrutura interna de exoplanetas com características semelhantes

Mercúrio pode esconder camada de diamantes de até 18 km de espessura sob a superfície, aponta pesquisa

Para combater a doença grave, é vital oferecer todas as opções de tratamento, inclusive tecnológicas

Por que a insuficiência cardíaca é uma das principais causas de mortalidade