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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Obcecada por romances e séries policiais em que malfeitores trocam de identidade (e de peruca) o tempo todo, a escritora e artista visual gaúcha Bruna Maia, autora do perfil @estarmorta nas redes sociais, sempre imaginava como cometer um crime sem ser pega. Na ficção, claro. Pensava tanto nisso que a escritora Clara Averbuck, com quem ela apresenta o podcast “Nu frontal”, sugeriu que escrevesse um romance. Bruna topou o desafio. E se contasse a história de uma mulher que se disfarça e invade a casa do ex para dopá-lo e torturá-lo psicologicamente?

Autora da HQ “Parece que piorou” (Quadrinhos na Cia), Bruna está lançando seu primeiro romance, “Com todo o meu rancor”, que é narrado por Ana, publicitária que larga o emprego bem remunerado para se vingar de Matheus. Embora tenham passado meses transando, se drogando e frequentando as baladas mais alternativas de São Paulo, não dá para dizer que eram namorados. Matheus não acreditava em rótulos. Ele é um “esquerdomacho”: um sujeito progressista e aparentemente sensível, mas folgado e com comportamentos machistas e até abusivos.

Sem melodrama

Matheus não perdia a oportunidade de insinuar que Ana era tóxica, excessivamente materialista, inimiga do meio ambiente e má feminista por gostar de apanhar no sexo. Na orelha do livro, Averbuck a chama de “detestável”. De fato, Bruna não queria que sua protagonista vingativa fosse “uma guerreira melodramática que só se fode, mas vence no final”. Ela comemora que cada vez mais mulheres recusem o papel de vítima na ficção, de romances como “A pediatra”, de Andréa del Fuego, a séries como “Fleabag”.

— Os homens sempre puderam ser detestáveis, difíceis e meio bundões. Todos os livros do Philip Roth passam pano para esse tipo de homem. Personagens como Tony Soprano (“Família Soprano”) e Walter White (“Breaking Bad”) são absolutamente violentos, mas são chamados de “complexos” porque são carismáticos. O louco é que eles são exaltados por homens incapazes de matar um rato — afirma Bruna.

Apesar de sua militância ecológica, Matheus é capaz de matar animaizinhos indefesos (fato do qual Ana se aproveita para torturá-lo psicologicamente). Também é cruel com mulheres. Ataca Ana com comentários supostamente inofensivos (“Tem muita morte no teu prato”) e se esmera em joguinhos psicológicos. Acusa-a de obrigá-lo a fazer coisas que ele supostamente não queria. Quando ela toca em algum ponto sensível, ele diz que não quer conversar sobre o assunto. E depois esbraveja porque ela não lhe pergunta o porquê do incômodo. “Uma das principais funções da mulher na vida de um homem”, diz Ana, é “ser um bode expiatório para todas as suas culpas recalcadas”. Já Bruna diz que muita mulher é “CVV de homem”, em referência ao Centro de Valorização da Vida, que atende pessoas com pensamentos suicidas.

— Chamo isso de “síndrome de enfermeira”. Muita mulher se sente na obrigação de consertar cafajeste, se sente especial quando o cara fala sobre sentimentos com ela. Os homens fazem isso com todas — diz a autora, que pede ao repórter para inserir um “nem todos” entre parênteses toda vez que ela se referir ao gênero masculino. — Muitos homens esperam que as mulheres sejam terapeutas, que expliquem o que eles estão sentindo. Isso não é troca, é trabalho.

Crítica de costumes

Bruna ganhou fama nas redes socais com quadrinhos sobre a vida dura dos millennials: depressão, precarização do trabalho, relacionamentos líquidos. Jornalista de formação, ela começou a desenhar em 2017, aconselhada por uma terapeuta. Em 2020, arriscou-se a pintar. Mês passado, estreou sua primeira exposição, “Loca; Inestable”, em São Paulo, cidade onde vive.

Nos últimos anos, Bruna se firmou como uma espécie de crítica de costumes. Além de compartilhar os quadrinhos, produz conteúdo nas redes sobre assuntos que vão da não monogamia ao aborto. Mas não se limita a dar opinião pessoal. Em seus comentários, junta a própria experiência com relatos de outras mulheres e, com frequência, busca autores para embasar seus argumentos. Na conversa com o GLOBO, criticou psicólogos evolucionistas como Steven Pinker, que reduzem os comportamentos associados ao masculino e ao feminino à biologia, e citou a filósofa francesa Élisabeth Badinter:

— Badinter mostra que, antes da Revolução Francesa (1789), as mulheres não davam a mínima para as crianças. A mortalidade infantil era alta. A solução foi domesticar as mulheres, confiná-las no lar e justificar tudo biologicamente — explica ela, que atribui sua facilidade para traduzir questões complexas em linguagem acessível a seu passado como repórter de economia. — Ao sufocar o lado emocional dos homens e hiperestimulá-lo nas mulheres, criamos um par disfuncional. Mas, de novo, nem todo homem...

‘Nem presa nem morta’

Bruna está trabalhando em um livro de não ficção sobre não maternidade. Nas redes sociais, ela se posiciona a favor da legalização do aborto — e perdeu parcerias publicitárias por isso. Fez questão de ser fotografada com um lenço verde com o slogan da campanha “Nem presa nem morta”. E, nos agradecimentos de “Com todo o meu rancor”, cita remédios indicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a interrupção segura da gravidez.

— Dependendo de quem ganhar a eleição, talvez eu tenha que me exilar —diz a autora, que pretende aposentar o esquerdomacho em suas próximas obras e retratar outros tipos de homens horríveis. — E homens legais também, que de vez em quando aparecem.

Capa de "Com todo o meu rancor", romance de estreia de Bruna Maia publicado pela Rocco — Foto: Reprodução
Capa de "Com todo o meu rancor", romance de estreia de Bruna Maia publicado pela Rocco — Foto: Reprodução

Serviço:

"Com todo o meu rancor"

Autora: Bruna Maia. Editora: Rocco. Páginas: 240. Preço: R$ 49,90.

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