Eis uma grande questão, daquelas que deixariam muita gente desconcertada:
— Você, como escritor, serve para quê?
Foi com esta pergunta que o peruano Mario Vargas Llosa começou uma conversa de compadres com o colombiano Gabriel García Márquez em setembro de 1967. Eram então bem amigos e respeitados pelo meio literário e pelos leitores, e o tal encontro se deu num auditório lotado da Universidade de Lima. A entrevista aberta ao público rendeu um pequeno grande livro, que caiu no esquecimento durante décadas e agora chega por aqui: “Duas solidões”. São só cem páginas de textos, algumas fotografias e ótimas sacadas.
Naquele momento, a América Latina era notável por dois motivos opostos. No cenário político, era um chiqueiro de ditaduras militares; ao mesmo tempo, esbanjava talento de seus escritores graças ao famoso cacófato “boom da literatura latino-americana”. Europa e EUA se embeveciam com nomes como Borges, Cortázar, Carpentier... Mais jovens que essa turma, García Márquez (com 40 anos) e Vargas Llosa (31) estavam no mesmo trem, com méritos indiscutíveis. Tanto que ambos ainda viriam a ganhar um Nobel de Literatura: em 1982 e 2010, respectivamente.
A obra-prima de García Márquez, “Cem anos de solidão”, fora lançada havia apenas três meses, vendia bem em alguns países e nem tinha chegado ainda ao Peru. Mas Vargas Llosa já a conhecia profundamente. Aliás, ele corria meio mundo fazendo palestras sobre o romance do amigo, gestando o livro “História de um deicídio”, que também está saindo por aqui.
É tudo real
Com humor e leveza, a conversa de 55 anos atrás esclarece muito sobre o trabalho de García Márquez, ou Gabo, e seu jeito peculiar de ver o mundo. Para ele, o chamado realismo mágico, como ficou batizada essa onda de narrativas hechas en Latinoamerica, era puro realismo, posto que por aqui tudo pode acontecer, como bem sabemos: “A irrealidade da América Latina é uma coisa tão real e cotidiana que está totalmente mesclada com o que se entende por realidade”, diz García Márquez a certa altura, como se estivesse falando da política brasileira atual.
Só que essa irrealidade é ampla, geral e irrestrita — e, naquela década, o que a literatura construía, aqui e ali, seriam retalhos do “romance latino-americano total, o que valerá para qualquer país da América Latina, apesar das diferenças políticas, sociais, econômicas, históricas”, na visão de Gabo.
O colombiano era um grande contador de casos, claro, e criador de frases que alimentaram sua literatura, seu dia a dia e a própria fama. Sobre Borges, por exemplo: “Vou ler todos os dias, mas é um escritor que detesto...” Ou: “Penso que não se deve exigir concretamente do escritor que seja um militante político nos seus livros, como não se pede ao sapateiro que seus sapatos tenham conteúdo político.” Há muito mais nessas frases do que em muitas entrevistas de escritores nossos contemporâneos.
Outro ponto curioso da conversa é conhecer um Vargas Llosa ainda de esquerda. Como se sabe, sua posição política deu uma guinada radical para o outro lado já nos anos 1970, e desde então o peruano se tornou um arauto endiabrado da ponta direita — sem que isso, benzadeus, manchasse sua obra ficcional com mensagens panfletárias. Basta ver o sucesso de seus romances em todas essas décadas.
Gabo, de sua parte, abraçou a esquerda de corpo e alma, chegando a viver em Cuba por um bom tempo. “Ele tinha um fascínio imenso por homens poderosos”, desdenha Llosa numa entrevista de 2017 também reproduzida no livrinho. Diga-se, a propósito, que o peruano não revela o motivo do socão com que carimbou o olho esquerdo do velho parceiro, em 1976. Política? Inveja? Saliência com a mulher alheia? Ninguém sabe até hoje, e a especulação é livre. Certo é que a agressão deu fim à amizade dos dois, que não mais se viram desde então. Até porque, lembremos, García Márquez morreu em 2014.
Além da conversa entre os dois gigantes, textos complementares de Pilar del Río, Socorro Acioli e, principalmente, do mestre Eric Nepomuceno, que também traduziu Gabo, fazem o pequeno “Duas solidões” valer muito mais do que pesa.