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Por Ruan de Sousa Gabriel


Livro encontrado  em Mariana (MG) seis meses após rompimento de barragem — Foto: Ana Branco/26-4-2016
Livro encontrado em Mariana (MG) seis meses após rompimento de barragem — Foto: Ana Branco/26-4-2016

Em 1978, o indiano Amitav Ghosh se abrigou do que parecia ser uma tempestade de granizo em um prédio da universidade onde estudava, em Nova Délhi. Ao sair, viu ônibus tombados, lambretas nas copas das árvores e paredes reduzidas a pilhas de tijolos. A tempestade tinha sido, na verdade, um tornado, algo “muito, muito raro”, o primeiro a atingir a capital da Índia. Décadas depois, já autor de romances como “Mar de papoulas” e “Maré voraz”, ele começou a se perguntar por que nunca escrevera sobre o tornado. E mais: por que eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes, são assunto da ficção científica mas não da chamada “alta literatura”?

Ghosh arrisca uma resposta no livro “O grande desatino: Mudanças climáticas e o impensável”, que chega ao Brasil pela editora Quina. O indiano afirma que a ausência de questões ecológicas na “ficção séria” não se deve à falta de imaginação ou engajamento dos autores, mas às limitações do romance enquanto gênero, ainda atado ao realismo dos anos 1800.

— Pensamos a literatura como vanguarda, mas ela é conservadora, segue aferrada a práticas do século XIX. Não podemos escrever sobre algo absolutamente real, cujas consequências vemos à nossa volta todos os dias, sem ganhar o rótulo de ficção científica — protesta Ghosh.

No ensaio, ele argumenta que, se fosse seguir as diretrizes do realismo, de fato não seria possível escrever sobre o tornado. Reação ao romantismo, que procurava na impetuosidade da natureza um espelho dos sentimentos humanos, o realismo se notabilizou pela sobriedade e se esforçou para exilar tudo o que parecesse inverossímil, improvável ou “muito, muito raro”. A ambição do romance era refletir a regularidade da vida burguesa.

Ainda na mesma época, a ciência tentou racionalizar a natureza, recusando o terror e o assombro que os românticos associavam ao sublime. Não à toa, em “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, a adúltera Emma diz detestar “os heróis comuns e os sentimentos temperados, como existem na natureza”.

Realismo vs. realidade

Ghosh aponta ainda o hábito cognitivo da “descontinuidade”, fundamental para o desenvolvimento da ciência moderna (pois permite isolar o objeto de estudo). Os cientistas passaram a isolar os problemas em partes cada vez menores em busca de uma solução. E os escritores seguiram pelo mesmo caminho.

Diferentemente dos poetas épicos que conjugavam múltiplos mundos (o dos homens, o dos deuses etc.), os romancistas delimitaram o espaço e o tempo dos romances, excluindo quaisquer “externalidades”. Assim, fica difícil relacionar um evento climático extremo à devastação de florestas a milhares de quilômetros dali ou a atual elevação das temperaturas ao colonialismo na era industrial. A ironia, escreve Ghosh, é que os truques do romance realista resultam na “ocultação do real”.

— O desafio estético fundamental de nossa época é escrever sobre as mudanças climáticas e sobre o não humano, os animais e as florestas — diz ele, admirador de pensadores indígenas como Ailton Krenak e Davi Kopenawa. — O discurso científico e a não ficção não podem retratar nossas respostas emocionais à crise ecológica. Só a literatura pode.

E a literatura tem tentado. O próprio Ghosh conta que, desde a publicação de “O grande desatino”, recebeu dezenas de livros sobre o tema. A maioria, porém, é não ficção ou pertence a um novo gênero fantástico, a “ficção climática” ou cli-fi. Ghosh sugere que a ficção científica não é o melhor registro para escrever sobre “a era do aquecimento global”, pois se trata de falar sobre o aqui e o agora. Em 2019, ele publicou “Gun Island”, romance nada fantástico, mas que rejeita a limitação espacial do realismo para enfrentar duas crises: a climática e a dos refugiados.

Cli-fi nacional

O desarranjo ecológico é tema também na literatura brasileira. Recentemente, chegou às livrarias “Depois do fim: Conversas sobre literatura e antropoceno”, reunião de ensaios de escritores e críticos literários como Fabiane Secches, Maria Esther Maciel e Aurora Bernardini. Romances como “A morte e o meteoro”, de Joca Reiners Terron, “A extinção das abelhas”, de Natalia Borges Polesso, e “De cada quinhentos uma alma”, de Ana Paula Maia, retratam eventos antes considerados improváveis com um pé no fantástico. Mais realistas, os contos de “Erva Brava”, de Paulinny Tort, terminam com uma cidadezinha do Cerrado submersa.

Já Daniel Galera se arriscou tanto no realismo quanto na fantasia. No romance “Meia-noite e vinte”, de 2016, a bióloga Aurora se preocupa com os rumos da ciência e com o enfrentamento das mudanças climáticas. Em “O deus das avencas” (2021), Galera incluiu o conto “Tóquio”, ambientado numa São Paulo futurista e superaquecida, onde alimentos são cultivados em apartamento de luxo e sucessivas pandemias forçaram a população a usar máscaras e chips de vacinação.

— As mudanças climáticas tornaram o realismo anacrônico, insuficiente para falar da nossa relação com as redes sociais ou dos hábitos de consumo, intrinsecamente ligados às crises política e ecológica. A maneira como aprendemos a construir a psicologia dos personagens e delimitar tempo e espaço não dá mais conta do presente — diz o autor de “Barba ensopada de sangue”, que está sendo adaptado para o cinema. — Escrever do ponto de vista de outras criaturas e resgatar saberes de outros povos talvez amplie nossa capacidade de narrar o real.

'Elevada capacidade de comunicação'

Daniel Galera desconfia que o desafio estético de escrever sobre a crise climática deve borrar ainda mais os limites entre a tal “ficção séria” e os gêneros chamados “fantásticos”, da ficção científica aos mitos. Ele diz não saber muito bem que caminho seguir, mas planeja oferecer uma oficina de escrita “pós-antropocêntrica”, uma tentativa de “buscar estímulos e leituras que ajudem a deslocar a narrativa do ponto de vista humano”.

Em seu primeiro romance, “As águas-vivas não sabem de si”, de 2016, Aline Valek elegeu como narradores o oceano e criaturas marítimas como baleias e até um polvo que, em gesto simbólico, rouba a câmera de uma mergulhadora. Valek afirma que escrever a partir do ponto de vista do não humano a ajudou a melhor construir e entender personagens da nossa própria espécie.

— Quis superar o indivíduo e contar a história das baleias como espécie, desde seus antepassados terrestres. As baleias têm elevada capacidade de comunicação. Quem não se entende somos nós — diz ela, que leu “Moby Dick” angustiada, pois o romance de Herman Melville é narrado do ponto de vista do navio baleeiro, “sem nenhuma empatia com a baleia perseguida”.

“Cidades afundam em dias normais”, segundo romance de Valek, é ambientado em Alto do Oeste, um município fictício. Primeiro, um lago que margeava a cidadezinha engole tudo, de pouquinho em pouquinho. Os moradores assistem ao desenvolvimento da tragédia sem se mexer. Anos depois, uma seca extrema faz a cidade ressurgir das águas. Valek pensava ter escrito uma “história insólita”, mas sempre recebe de leitores notícias de cidades que tiveram o mesmo destino de Alto do Oeste. A ficção sobre as mudanças climáticas, no entanto, nem sempre precisa ser trágica. Valek acaba de publicar o conto “Carranca”, de inspiração solarpunk, estética que imagina um futuro mais luminoso para a Humanidade, desde que não fiquemos parados enquanto tudo à nossa volta afunda.

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