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Por Edward Pimenta


Tela 'Remorso de Nero' (1878), de John William Waterhouse — Foto: Reprodução
Tela 'Remorso de Nero' (1878), de John William Waterhouse — Foto: Reprodução

Ao longo do tempo, a imagem de Nero tocando sua lira com a cidade ao fundo ardendo em chamas vem sendo usada repetidamente pelos cartunistas em jornais e revistas de todo o mundo para criticar os malfeitos dos governantes. Este é um exemplo de como a Roma Antiga e seus imperadores estão gravados no imaginário coletivo.

A influência que as imagens dos imperadores romanos tiveram na arte e na cultura, do Renascimento até agora, e a constatação de que os ricos e poderosos vêm sendo retratados bem aos moldes daqueles antigos autocratas são a matéria-prima de “Doze Césares”, livro de autoria da britânica Mary Beard, professora de estudos clássicos na Universidade de Cambridge.

O livro, repleto de ilustrações, foi originado a partir de uma série de palestras proferidas em Washington, em 2011, e resulta em uma prosa que preserva o tom de conversa bem-humorada, avançando sobre um amplo arco temporal, da Antiguidade aos dias de hoje.

Beard é uma figura midiática na Inglaterra. Sua prolífica carreira alia a pesquisa acadêmica à divulgação jornalística — para a BBC, fez documentários sobre as ruínas de Pompeia, Calígula e Júlio César. É uma intelectual que debate com seus leitores no Twitter, rede na qual acaba de divulgar um podcast.

A professora e autora Mary Beard — Foto: Alex Welsh/NYT/7-4-2016
A professora e autora Mary Beard — Foto: Alex Welsh/NYT/7-4-2016

A autora tem publicado, ao longo das últimas décadas, livros que popularizaram o gosto pela História, alguns já disponíveis no Brasil, como “SPQR: uma história da Roma Antiga”, “Mulheres e poder: um manifesto” e “Antiguidade clássica: uma brevíssima introdução”. Seus conhecidos guias sobre o Partenon de Atenas e o Coliseu de Roma ainda não foram traduzidos.

De sua casa em Cambridge, na Inglaterra, Beard conversou por videoconferência com o GLOBO sobre o livro, a derrubada de estátuas em lugares públicos e a militância na academia que quer acabar com os estudos clássicos, sob o argumento de que sustentam uma mitologia da “branquitude”.

Por que os clássicos importam e o que aprendemos com eles?

Porque estão ao nosso redor. Vemos os imperadores romanos em cartuns nos jornais, quase todo mundo reconhece Nero tocando sua lira enquanto Roma queima. Os clássicos são parte de nós, ainda os lemos e traduzimos. Julho e agosto são meses nomeados em homenagem aos imperadores Júlio César e Augusto. Se podemos aprender algo com eles? Não acho que encontraremos soluções para nossos problemas na Roma Antiga, mas creio que os clássicos nos ensinam a olhar melhor para nós mesmos.

Por que os 12 imperadores especificamente?

Os “Doze Césares” é o título da obra de Suetônio (69 d.C.-141 d.C.), historiador romano que produziu um conjunto de biografias dos primeiros 12 imperadores, de Júlio César, assassinado em 44 a.C., a Domiciano, também executado, em 96 d.C. (muitos deles tiveram o mesmo fim). Na Renascença se tornaram um grupo canônico dos imperadores, os mais famosos, reproduzidos, pintados e transformados em escultura. Há dezenas de imperadores, mas estes se tornaram uma espécie de conjunto inicial, por isso me dediquei a eles.

Suetônio foi influenciado pelas artes e pelos textos disponíveis na época?

Pode ser. Ele dá descrições detalhadas da aparência dos imperadores. Augusto tem dentes pretos, muitos deles têm espinhas horríveis. Mas os bustos que sobreviveram aos imperadores não se parecem com o que Suetônio sugere – o autor devia saber das diferenças entre suas descrições e as reproduções em bronze e mármore no mundo romano, que mostravam imagens oficiais, não reais.

É possível avaliar a autenticidade das imagens ao longo dos séculos?

É muito mais difícil do que se imagina. O que dificulta o quebra-cabeça é que a maioria dos bustos que temos dos Césares não vem com um nome tipo “Júlio César” inscrito embaixo. Além disso, é difícil descobrir uma imitação de uma escultura antiga, porque os escultores no século I d.C. usavam o mesmo mármore, as mesmas ferramentas e técnicas que os do século XVII d.C. É difícil diferenciar uma escultura antiga de uma criada 1.500 anos depois.

Por que os Césares impactaram tanto a arte?

Isso foi a motivação para começar o livro. Muitas representações dos Césares foram feitas na Renascença e nos séculos posteriores porque eles eram a personificação do poder, passavam uma imagem de transgressão, corrupção, luxúria e, muitas vezes, liderança. Ficamos intrigados com o sucesso ou fracasso deles, queremos saber por que sobreviveram ou por que foram mortos. Não é admiração: é difícil admirar Calígula ou Nero, mas estes nos fazem pensar sobre o fato de que o poder é maior que a vida.

Nero é tão desagradável hoje como no passado?

Nero é um caso interessante. Se voltarmos ao final da Idade Média, uma das imagens mais populares dele é a cena horrível em que aparece com uma taça de vinho na mão diante do cadáver dissecado da mãe, Agrippina, que ele assassinara. Hoje essa imagem não é mais popular. Nos últimos 200 anos, os artistas tendem a retratar Nero como uma espécie de tirano torturado. Há uma linda pintura do artista britânico John William Waterhouse que revela o remorso de um jovem Nero, deitado em sua cama, devastado, tal qual um adolescente mal-humorado que poderíamos reconhecer hoje. Ao longo do tempo, os artistas escolhem diferentes elementos da História.

Como são retratadas as esposas, mães e filhas dos Césares?

Na literatura são vistas como corruptoras, manipuladoras, má influência e maníacas sexuais. Livia, mulher do imperador Augusto, supostamente provocou a morte de jovens da família imperial porque queria pôr seu filho Tibério no trono. Messalina competia com as prostitutas para ver quem dormia com mais homens na mesma noite e sempre ganhava. Já nas artes são representadas como mães respeitáveis, mulheres que carregam os filhos que serão os futuros imperadores.

E qual o tipo de representação mais interessante?

Sempre gostei da representação literária porque se parece com a forma como falamos sobre as mulheres de políticos hoje. A mulher do primeiro-ministro Boris Johnson, Carrie, é tida como má influência para ele, dizem que escolheu um papel de parede muito caro para seu apartamento e que está articulando nos bastidores. Sempre houve um sentimento muito forte de que as mulheres manipulam seus homens para se fazerem na vida e isso certamente remonta aos romanos.

Qual foi a sua maior surpresa ao escrever o livro?

No século XVI, o artista veneziano Ticiano retratou 11 dos 12 Césares e as pinturas terminaram consumidas por um incêndio no século XVIII. A surpresa foi descobrir que há inúmeras cópias e histórias produzidas a partir delas, antes e depois de sua destruição. Por isso, os Césares de Ticiano se tornaram uma sensação, todo mundo queria saber o que tinha acontecido com eles e, ao mesmo tempo, se a maioria de nós hoje guarda ao menos uma vaga imagem dos imperadores romanos, devemos a Ticiano. As pessoas do século XVII não viram imperadores romanos como nós — eles os viam como Ticiano os tinha recriado, em parte baseado em esculturas antigas.

Militantes lutam para derrubar estátuas de personagens históricos em espaços públicos. Estátuas devem cair?

Algumas sim, elas sempre caíram. Os romanos atiravam no Rio Tibre estátuas de imperadores de quem eles não gostavam. Às vezes refaziam os rostos das esculturas para que parecessem outra pessoa. Dizer que nenhuma representação jamais deveria ser desabilitada é uma espécie de fossilização insana da arte. Acredito, no entanto, que devemos pensar para que servem as esculturas e os retratos. O senso comum diz que as estátuas são erigidas para transformar os retratados em heróis. Mas o fato é que no século XVIII não havia muita gente que admirasse os Césares — em sua maioria foram autocratas corruptos. Em muitos aspectos, os retratos e estátuas servem também para deplorar, criticar e lembrar das pessoas que no passado costumávamos admirar. Um dia poderão derrubar nossos próprios retratos.

Há acadêmicos que pedem o fim dos estudos clássicos sob a alegação de que sustentam uma mitologia da “branquitude”. Qual é a sua opinião?

Concordo que os estudos clássicos têm sido instrumento para apoio à supremacia branca. Importante reconhecer os maus usos, mas isso não significa destruir a disciplina. Mau uso houve em todos os campos da academia: a física nuclear nos deu a bomba atômica. Há bons usos também. No final do século XIX, as pessoas evocavam a Antiguidade quando argumentavam sobre os direitos dos homossexuais, lembrando que no mundo antigo o tema era tratado de forma bem diferente, sem tanta repressão. A História não é sobre o que gostamos, ela ensina quem somos e onde estamos. Não acho que devemos queimar tudo.

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