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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Na tradição islâmica, Fatima é um nome sagrado. É o nome da filha caçula do profeta Maomé e, em árabe, significa “pequena camela desmamada”. Foi esse o pseudônimo escolhido por uma jovem escritora de origem argelina que impressionou a cena literária francesa ao publicar um romance honesto sobre suas múltiplas identidades: imigrante, periférica, muçulmana, lésbica. “Eu me chamo Fatima. Eu carrego o nome de uma personagem simbólica do Islã. Eu carrego um nome que deve ser honrado. Um nome que não se pode ‘sujar’, como dizemos em casa”, dizem as primeiras linhas de “A última filha”, autoficção assinada por Fatima Daas e recém-publicada no Brasil. Todos os capítulos do livro começam com as mesmas palavras: “Eu me chamo Fatima”.

— Quis que minha narradora carregasse, além do peso da própria existência, a culpa por não ser capaz de honrar seu próprio nome e sua família, de ser uma muçulmana tão boa quanto Fatima, a filha do Profeta. É uma personagem tão imperfeita quanto muçulmana — conta a escritora ao GLOBO. — Adotar um pseudônimo também me permitiu romper com o nome que a minha família escolheu para mim, me emancipar dela, me reinventar.

Múltiplas identidades

A certa altura de “A última filha”, a narradora conta à mãe que está escrevendo um romance: “É a história de uma garota que não é bem garota, que não é nem argelina nem francesa, nem de Clichy nem de Paris, uma muçulmana, acredito, mas não uma boa muçulmana, uma lésbica com uma homofobia integrada”.

“Clichy” é Clichy-sous-Bois, cidade de maioria árabe na região metropolitana de Paris onde Fatima (autora e personagem) cresceu. “A última filha” embaralha ficção e realidade. A personagem é alguns anos mais velha do que a autora, nascida em 1995. Ambas têm pais argelinos, creem nas palavras do Profeta e gostam de mulheres. A escritora, no entanto, insiste que não se trata de uma autobiografia.

— Não quis contar “a verdade” sobre minha vida, mas parti de elementos autobiográficos. Eu sou de fato a filha caçula de uma família argelina, cresci na periferia, sou lésbica e muçulmana. Mas a ficção tem um papel importante no livro. Não seria capaz de escrever uma autobiografia, de me expor completamente — afirma ela, que defende sua opção por explorar várias facetas de sua personalidade no livro. — Eu não podia falar apenas sobre imigração. Ou apenas sobre homossexualidade. Ou apenas sobre religião. Porque tudo isso faz de mim quem eu sou. Nesse romance, quero mostrar uma multiplicidade de identidades que muitas vezes é distorcida ou invisibilizada.

Criada em uma casa onde a sexualidade, os sinais de ternura e até o amor eram tabu, Fatima não demorou a descobrir seu desejo homossexual. Desconfia até ser poliamorosa, embora esteja disposta a renunciar todas as outras por uma mulher mais velha chamada Nina Gonzalez. Ao mesmo tempo, ela tenta “ficar o mais perto possível” da religião, “fazer dela a way of life, um modo de vida”. Vai à mesquita e diz que tem uma amiga, muçulmana praticante, mas que prefere mulheres. Pergunta o que ela deve fazer. Ouve que, de fato, existem muçulmanas lésbicas assim como existem cristãos gays. No entanto, “a homossexualidade é proibida no Islã” e sua amiga deve se arrepender, rezar, jejuar e talvez se casar com um homem.

A tentativa de Fatima de conciliar a fé com um desejo proibido pela religião causou escândalo na França. Alguns críticos a acusaram de homofobia internalizada por não romper com a fé de seus pais. Já ela creditou tais comentários à islamofobia e à xenofobia. Faïza Guène, outra escritora francesa de origem argelina, chegou a dizer que “muitas pessoas prefeririam que Fatima Daas tivesse escrito um livro sobre seu rompimento com o Islã por ser lésbica”. Fatima concorda.

— Na França, todo mundo muçulmano é considerado necessariamente homofóbico se for muçulmano, mesmo que seja gay. Eu virei a lésbica homofóbica porque ousei dizer que as três religiões monoteístas consideram a homossexualidade pecaminosa. Parece que você só pode ser lésbica na França se for branca e ateia — diz. — Meu livro foi celebrado, mas também foi atacado, porque não correspondi às expectativas dos outros. Mantive minha dignidade argelina, meu orgulho e minha fragilidade. Fui honesta e não deixei que me colocassem em nenhuma caixinha.

Fatima não se incomoda com as críticas e lembra a calorosa recepção dos leitores que se reconheceram no livro.

— Por muito tempo, revirei a literatura atrás de uma história que falasse comigo, mas não encontrei nada. Eu me sentia extremamente sozinha e, por muito tempo, achei que fosse a única lésbica muçulmana do mundo. Senti urgência para escrever a história que eu adoraria ter lido na adolescência. Quando me encontram, meus leitores me agradecem, dizem que eles finalmente se viram representados na literatura. Esses relatos me dão força para continuar — conta.

Respiração peculiar

A forma da “A última filha” também denuncia a influência islâmica. Escritos com frases curtas, que se leem como versos, e entremeados por expressões árabes, os capítulos soam como orações recitadas por lábios fiéis. Além da musicalidade do Alcorão, Fatima incorporou à sua prosa o ritmo do rap e trechos de autoras que investigam o desejo feminino e a opressão de classe na França, como Marguerite Duras e Annie Ernaux.

Mas há ainda outra explicação para o estilo conciso, que tenta soar como alguém de fôlego curto, que precisa parar para respirar enquanto fala: Fatima é asmática.

— Tento escrever como falo. Não gosto de frases longas, cheias de imagens. Gosto de frases curtas e diretas — explica. — Tentei criar uma linguagem própria, marcada pela oralidade e pela economia de palavras. Uma linguagem que fosse também silêncio.

Capa de "A última filha", romance da escritora francesa Fatima Daas, publicado no Brasil pela Bazar do Tempo — Foto: Divulgação
Capa de "A última filha", romance da escritora francesa Fatima Daas, publicado no Brasil pela Bazar do Tempo — Foto: Divulgação

Serviço:

"A última filha"

Autora: Fatima Daas. Tradução: Cecilia Schuback. Editora: Bazar do Tempo. Páginas: 196. Preço: R$ 58.

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