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Por Bolívar Torres


Lima Barreto, pintado na rua Major Mascaranhas, no Cachambi, em ação do Projeto Negro Muro — Foto: Márcia Foletto
Lima Barreto, pintado na rua Major Mascaranhas, no Cachambi, em ação do Projeto Negro Muro — Foto: Márcia Foletto

Em sua segunda e última internação no antigo Hospital Nacional de Alienados, entre dezembro de 1919 e fevereiro de de 1920, Afonso Henriques de Lima Barreto redigiu uma série de anotações que viriam a ser publicadas postumamente, em 1953, sob o título de “Diário do hospício”.

“Que dizer da loucura?", pergunta-se em uma das passagens o escritor, cujos 100 anos de morte completam-se na terça-feira. “Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. (...) Não há espécies, não há raças de loucos, há loucos só.”

Visto hoje por muitos estudiosos como um símbolo do adoecimento e da loucura do Brasil do pós-abolição, a experiência manicomial de Lima Barreto é revisitada em duas novas obras, na literatura e no cinema. O narrador do romance “Uma temporada no inferno” (Malê), de Henrique Marques Samyn, interna-se voluntariamente no hospício para refazer os passos de Lima e concluir os seus inacabados escritos sobre a doença mental. Já o longa “Lima Barreto, ao terceiro dia”, do cineasta Luiz Antonio Pilar, retrata o escritor carioca durante a sua derradeira passagem pelo manicômio, relembrando o seu passado dentro e fora da instituição.

Cena do filme 'Lima Barreto, ao Terceiro Dia' com Luis Miranda — Foto: Divulgação
Cena do filme 'Lima Barreto, ao Terceiro Dia' com Luis Miranda — Foto: Divulgação

Saindo às vésperas do centenário de sua morte, as obras refletem os últimos momentos do autor negro, corroído pelo alcoolismo, mas também por uma sociedade racista e injusta que ele, como poucos, teve coragem de denunciar em seus romances, contos e artigos para a imprensa. Quando morreu de ataque cardíaco, no dia 1 de novembro de 1922, após beber um cálice de vinho, era um homem cansado e precocemente envelhecido, cada vez mais fechado em um ambiente que o deprimia — a sua casa no bairro suburbano de Todos os Santos, Grande Méier. Toda essa fragilidade pode ter sido, é claro, agravada pela internação, ocorrida três anos antes.

— Ele pagou um preço muito pesado por ter confrontado o racismo em uma obra militante — observa Samyn. — Viu muitas portas se fecharem, constatou a desqualificação de sua obra pela crítica e sofreu com uma estigmatização que pode ser percebida até hoje.

Papel, lápis e alter ego

No hospício, Lima viveu situações extremas, mas não deixou de produzir. O médico Juliano Moreira, um dos poucos profissionais da instituição que ele via com estima, deu-lhe um papel e um lápis para que ele escrevesse suas memórias. Como muitos estudiosos observam hoje, essas anotações volta e meia apontam caminhos ficcionais, com o autor reimaginando situações que havia testemunhado e personagens com quem havia convivido. Volta e meia, um confuso Lima trocava seu próprio nome e confundia-se com seu alter ego literário. Pouco antes de morrer, ele iniciaria o romance “O cemitério dos vivos”, inspirado nessas vivências. Mas não conseguiria terminá-lo.

Em “Uma temporada no inferno”, o protagonista não nomeado se torna um duplo do autor de “Clara dos Anjos”, repetindo o mesmo destino trágico de seu ídolo literário ao seguir seus passos no hospício.

— O personagem faz isso porque é um homem negro em uma sociedade racista, que se espelha em Lima para tornar-se “alguém” — explica Samyn. — Ele tenta reconstruir essa trajetória, almejando um destino diferente; mas como isso seria possível, sendo também ele um homem negro no Brasil?

Assim como “Uma temporada no inferno”, “Lima Barreto, ao terceiro dia” não foi idealizado em função da efeméride. O longa foi concluído em 2020, mas teve lançamento adiado em função da pandemia. Estreou no cinema na última sexta-feira e será exibido terça-feira no Canal Brasil, às 19h10.

Baseado na peça teatral homônima de Luiz Alberto de Abreu, o roteiro traz Lima Barreto em duas versões: aos 41 anos, interpretado por Luis Miranda, e mais jovem, aos 30, na pele do ator Sidney Santiago Kuanza, fruto da sua memória e de alucinações constantes. No hospício, ele mistura passado e presente, fantasia e realidade, sempre relembrando os personagens que criou. E também traz os questionamentos sociais que marcaram sua obra e que continuam atuais.

— Hoje esse processo do Lima no hospício tem sido revisto, até mesmo por profissionais da medicina, com a intenção de rever o estigma da doença — diz o diretor Luiz Antonio Pilar. — Paradoxalmente, Lima estava extremamente lúcido nesse período, inclusive consciente do preconceito social sobre a própria doença, e perguntando-se qual é a função real de um artista na sociedade, em especial de um artista negro.

 Trecho da HQ 'Triste República: A Primeira República comentada por Lima Barreto', de Lilia Moritz Schwarcz e Spacca — Foto: Divulgação
Trecho da HQ 'Triste República: A Primeira República comentada por Lima Barreto', de Lilia Moritz Schwarcz e Spacca — Foto: Divulgação

Para Pilar, transformar Lima em personagem de ficção e mostrá-lo ao público de hoje é uma grande responsabilidade. Mas também propício.

— No filme, as reflexões de Lima refletem o que estamos vivendo hoje — lembra o cineasta. — Como jornalista, Lima combateu as fake news e lutou pelo jornalismo independente. Como artista, queria autonomia, queria uma sociedade livre e independente.

Pilar diz que “Lima não era um gênio, era um homem crítico em um país que briga para não se curar, que briga para manter suas injustiças”.

'A cor mais cortante'

Os últimos dias da vida do autor também serão analisados no primeiro dos cinco episódios do podcast “Lima Barreto: o negro é a cor mais cortante”, que estreia nesta terça-feira na Batuta, rádio de internet do Instituto Moreira Salles. O título da produção faz justamente referência a uma das passagens do “Diário do hospício”, em que Lima descreve a “horrível” aparência do pátio da Seção Pinel, repleto de doentes negros como ele.

“Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes ali recolhidos, a imagem que se fica dele, é que é tudo negro”, escreve Lima. “O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz que outras se ofusquem em nosso pensamento”.

Concebido e apresentado por Beatriz Resende, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e estudiosa de Lima há mais de 40 anos, e Gabriel Chagas, professor de Literatura e Cultura Luso-Afro-Brasileira na Universidade de Miami, o episódio usa matérias da imprensa da época para mostrar com o escritor era visto por seus contemporâneos. Um dos mitos, aliás, é de que Lima não tinha reconhecimento como escritor. De acordo com Resende, ele viria a cair no esquecimento somente após sua morte, até ter sua obra recuperada por seu primeiro biógrafo, o jornalista Francisco de Assis Barbosa.

— Esse período de ostracismo foi uma espécie de segunda morte do escritor — define Resende, que na terça fará a palestra “As muitas mortes de Lima Barreto”, no Auditório Icema de Oliveira do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, em Botafogo.

O podcast também trará documentos da época, como uma carta escrita em 1952 pelo médico Heitor Pérez, então diretor da Colônia Juliano Moreira, instituição que sucedeu ao Hospício Nacional, a Assis Barbosa. Segundo Resende, o racismo na missiva dá uma ideia dos maus-tratos que Lima e outros pacientes teriam sofrido no manicômio. Nela, o psiquiatra sugere que o escritor recorria ao alcoolismo como fuga pela “timidez sexual” e à literatura “como superação do sentimento de inferioridade étnico-social”.

— Se não fosse a ajuda de um médico lúcido e generoso como Moreira, é muito possível que Lima nunca mais tivesse saído do hospício — especula Resende.

Metáfora de um Brasil

Como observa o crítico Alfredo Bosi no prefácio da edição conjunta de “Diário de hospício/ O cemitério dos vivos” (2017), da Companhia das Letras, o escritor denunciou com clareza como essas instituições misturavam supostos dementes com qualquer indivíduo de comportamento considerado “anormal”, de meliantes a alcoólatras. Todos sofrendo as mesmas violências.

Autora de “Lima Barreto: triste visionário”, biografia de Lima Barreto lançada em 2017, Lilia Moritz Schwarcz acredita que, para o escritor, o hospício é a metáfora de um Brasil “enlouquecido pela experiência tão longa da escravidão”.

— Essa experiência naturalizou uma linguagem da desigualdade, e é a essa doença que Lima Barreto se refere a todo momento — diz a antropóloga. — Lima fazia uma crítica a esse Brasil que parecia uma instituição asilar, despejando no mesmo recinto criminosos e alienados.

Em parceria com o cartunista cartunista Spacca, Lilia Moritz está lançando a HQ “Triste República: a Primeira República comentada por Lima Barreto”, que narra as contradições do período pelo olhar do escritor e de suas ideias “à frente do seu tempo”, como julga a antropóloga.

Na próxima quinta-feira, ela participa com Beatriz Resende e o pesquisador Igor Sacramento da mesa “Lima Barreto: a atualidade de sua obra e fortuna crítica”, que faz parte do colóquio “Centenário Lima Barreto —100 anos de encantamento”, uma realização da Escola de Comunicação da UFRJ e da Livraria Lima Barreto (veja a programação na página ao lado).

— Essa volta da literatura de Lima não é uma coincidência — diz Lilia. — Ele é um intérprete que fala desse Brasil que finalmente começa a entender que a questão racial é a grande contradição da nacionalidade. De que não podemos falar de democracia com um projeto tão exclusivista.

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