Idealizadora da Festa Literária de Paraty, a inglesa Liz Calder acompanhou de perto as transformações do evento desde a sua criação, em 2003. Em duas décadas, a Flip ganhou programações paralelas, experimentou novas linguagens, dialogou com o teatro, a música e as artes plásticas, inspirou iniciativas similares pelo resto do país... Mas a essência do evento literário, acredita Liz, continua a mesma: o contato direto com os escritores.
Para a editora inglesa, de 84 anos, o fato ficou evidente nas últimas edições, quando a Flip, assim como outros festivais pelo mundo, foi obrigada a migrar para o virtual devido à Covid, reunindo autores em mesas e bate-papos exclusivamente no formato online. Agora, de volta ao presencial, ela e o público estão matando a saudade das tendas lotadas.
— Nada substitui o contato direto com os autores — diz ela. — Acredito que esta tenha sido a lição da pandemia para os festivais literários. A de que a força desses eventos está na presença do autor. É muito difícil ter comunicação com o público em um formato online. A experiência é outra.
Liz vem todo ano para a Paraty acompanhar o evento — e, não raro, participa como convidada. Amanhã, ela se apresentará na mesa de encerramento, na qual personalidades leem trechos de obras.
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A história de Liz com o Brasil começou nos anos 1960, quando seu marido, que trabalhava na Rolls-Royce, foi transferido para cá. Ficaram apenas quatro anos, mas continuaram voltando. Após se apaixonar por Paraty nos anos 2000, ela teve a ideia de criar um evento como o festival Hay-on-Wye, que organizava no País de Gales. A maior parte dos editores não botou fé:
— Disseram que nunca ninguém iria até Paraty para ver escritores falar.
Mas a desconfiança durou pouco. Com o sucesso imediato do evento, todas as editoras passaram a tentar emplacar seus autores na programação. No ano de estreia, Liz já era fundadora da Bloomsbury, primeira editora a apostar em J.K Rowling. A mãe de Harry Potter virou sua amiga íntima, mas Liz nunca conseguiu trazê-la a Paraty. Mas outros grandes nomes circularam nos primeiros anos do evento, como Salman Rushdie e Margaret Atwood, fortalecendo a reputação internacional da festa.
Liz acredita que o lado afetuoso da cultura brasileira favorece esse tipo de festival. Na primeira edição, em 2003, o seríssimo historiador Eric Hobsbawm (1917-2011) se assustou com a quantidade de pessoas o aguardando fora da tenda para um autógrafo. Os organizadores tiveram que tirá-lo pelos fundos. Mas os fãs descobriram e o perseguiram assim mesmo.
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— Hobsbawm contou que se sentiu pela primeira vez como uma estrela de Hollywood — lembra Liz. — E complementou: “Até que estou gostando”.
Ela também se orgulha do evento por promover o encontro de autores nacionais com estrangeiros, estreitando laços entre a literatura brasileira e a cena internacional.
— Nas primeiras edições, foi muito bom ver Julian Barnes ou Don de Lillo trocando ideias com Milton Hatoum, Bernardo Carvalho e Luis Fernando Verissimo de maneira descontraída — diz Liz. — O ambiente de Paraty permite isso. Os escritores e editores andam de barco, nadam, tomam caipirinha, todo mundo relaxado.
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Riquezas do país
Entre os momentos inesquecíveis da Flip, Liz cita a participação de Tom Stoppard. O premiado dramaturgo inglês era pouco difundido no Brasil até encantar o público em 2008. Desde então, suas peças passaram a ser traduzidas e encenadas nos palcos brasileiros.
— Enviei uma carta de fã o convidando-o para Paraty — lembra Liz. — Ele me contou que estava olhando seu correio, recheado de convites. A cada um que pegava dizia “não” para a secretária. Quando chegou no nosso, pensou: “Hmmmm... Brasil? Nunca estive lá”. E disse sim. Acabou amando Paraty e Paraty o amou.
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Agora, Liz acredita que o futuro da Flip está na fusão com outras linguagens e expressões artísticas, recebendo ainda mais shows e peças de teatro.
— A Inglaterra ainda tem uma visão limitada de o que é o Brasil, acha que é só samba, futebol e destruição da Amazônia — diz Liz. — Mas o Brasil é rico em muitos aspectos, como na literatura.