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Por Ruan de Sousa Gabriel

Sempre que a foto de uma aldeia indígena chega às mãos do químico Francisco Vilaça Gaspar, ele sente de novo o calor úmido da Amazônia e um cheiro de repelente. Ouve o barulho dos mosquitos, do fogo e dos bichos na mata. Filho da antropóloga Aparecida Vilaça, que há mais de três décadas realiza pesquisa de campo entre os wari’, em Rondônia, Francisco frequenta aldeias desde 1 ano de idade. Demorou a descobrir que nem todo mundo passava as férias escolares com “parentes” indígenas.

—Foi um choque para mim. Não havia tanta gente com quem eu pudesse compartilhar essa experiência — diz o químico.

Mas ele deu um jeito. Francisco e Aparecida acabam de lançar “Ficções amazônicas”, reunião de 11 contos inspirados no imaginário de povos originários. É o primeiro livro de ficção da antropóloga, professora da UFRJ e autora de títulos como “Paletó e eu: memórias de meu pai indígena” e “Morte na floresta”, escrito a quente, quando a Covid chegava às tribos. “Ficções amazônicas” é parte de uma fornada de livros de ficção que apresenta as culturas indígenas a quem, diferentemente de Francisco, não teve a sorte de crescer em contato com uma aldeia.

Leitores sem muita paciência para compêndios cabeçudos de antropologia podem conhecer um pouco da história, das tradições e das narrativas de diferentes povos em romances como “Aqui. Neste lugar”, de Maria José Silveira, “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk, “Tom vermelho do verde”, de Frei Betto, e “Terrapreta”, de Rita Carelli, que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura, anunciado neste sábado (5), na categoria Melhor Romance de Estreia do Ano de 2021. Se interessa por mitologia? Vale folhear a nova edição de “O casamento entre o céu e a terra”, de Leonardo Boff, que narra 30 mitos de diversas nações indígenas, como os kaingang, os suruí e os kamayurá.

Criação com bibliografia

Cada uma das 11 histórias de “Ficções amazônicas” se inspira na cultura de um povo diferente. No entanto, os autores optaram por não citar nenhum deles no livro. Além da imaginação (e da influência de Jorge Luis Borges, mestre da narrativa curta), Aparecida e Francisco se apoiaram em farta bibliografia antropológica para escrever os contos, que descrevem diversos costumes indígenas, como os rituais que marcam a chegada da puberdade e até a antropofagia — os wari’, povo estudado por Aparecida, praticavam o canibalismo até os anos 1960. Um tema perpassa todas as histórias: o encontro com o outro, que pode ser um antropólogo, um grupo de amigos enlutados, evangélicos fanáticos ou espíritos da floresta.

Ainda que os povos que inspiraram as ficções não sejam nomeados, o último conto do livro, “No rastro de Macunaíma”, dá uma dica de onde eles vivem: “aldeias indígenas situadas nos rios Purus, Juruá, Ouro Preto, Negro-Ocaia, Vaupés e Catrimani”. Nessa história, um aristocrata paulistano escreve, sob a influência mágica de um muiraquitã, o talismã do herói sem nenhum caráter, contos sobre os povos que produziram os objetos de sua coleção de arte indígena.

O romance “Aqui. Neste lugar”, de Maria José Silveira, também homenageia “Macunaíma” e é dedicado a Mário de Andrade, modernista que buscou, nos povos nativos, ingredientes para a criação da identidade brasileira.

Os povos originários aparecem com frequência na literatura da escritora goiana. Seu primeiro romance, “A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas” (2002), é uma espécie de genealogia das mulheres brasileiras. Em “Guerra no coração do cerrado” (2006), resgata a kayapó Damiana da Cunha, que mediou conflitos entre brancos e nativos. Também retratou lutas indígenas em “Maria Altamira”, finalista do Prêmio Jabuti em 2021.

Narrado por Ci do Mato (também presente no clássico modernista) e protagonizado pelos gêmeos Macu e Naíma, “Aqui. Neste lugar” se passa no Brasil pré-cabralino e imagina uma Amazônia povoada por povos como as icamiabas, mulheres guerreiras que extirpavam um seio para melhor manusear o arco e flecha, o Povo da Chuva, que tem a pele escura, e Primeiro Povo, que vive livre, “com alegria e amor”, na “Terra Sem Males”. A tranquilidade, porém, é interrompida pelo assédio dos mercenários peludos chamados de Homens Sem Cor.

Maria José diz que demorou a perceber que estava escrevendo um romance que, de forma alegórica, tratava de ataques aos indígenas.

— Tive a ideia ao ver marchas indígenas atravessando São Paulo para mostrar quão trágica seria a construção da Usina de Belo Monte. A questão indígena me sensibiliza, e não sei nem quero pensar o Brasil sem a presença deles. Como é possível, até hoje, não termos compreendido que somos filhos deles? Temos muitíssimo a aprender com esses nossos parentes — afirma Maria José.

Imagem com filme infravermelho de oca próxima à missão católica do Rio Catrimani, em Roraima, em 1976 — Foto: Claudia Andujar
Imagem com filme infravermelho de oca próxima à missão católica do Rio Catrimani, em Roraima, em 1976 — Foto: Claudia Andujar

A escritora, que é antropóloga de formação, diz que a admiração pela cultura indígena, bem apresentada hoje por intelectuais como Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Daniel Munduruku, tem se espalhado. Mas alerta:

— A perseguição a eles continua incrivelmente devastadora e cruel. Espero que a partir de 1º de janeiro esse processo seja revertido de uma vez por todas.

Corrente literária

Não é de hoje que as narrativas indígenas povoam a literatura brasileira. De José de Alencar a Mário de Andrade, escritores sempre recorreram às culturas dos povos originários para forjar a identidade nacional. No entanto, o escritor Daniel Munduruku observa, de uns anos para cá, a criação de uma “nova linguagem” para tratar de temas indígenas — que passa por maior reverência à sabedoria desses povos e questionamento de termos como “índio”, “tribo” e “etnia” para combater o desconhecimento sobre as culturas nativas.

Ele aponta títulos como “Meu querido canibal” (2000), de Antônio Torres, e “Meu destino é ser onça” (2009), de Alberto Mussa, como os primeiros expoentes desse movimento, do qual também participam escritores indígenas, como Kaká Werá, Ytanajé Cardoso, Edson Kayapó, Eliane Potiguara e Márcia Kambeba.

Autor de livros infantis, Munduruku afirma que o interesse pelas culturas indígenas é resultado da luta dos próprios povos originários por visibilidade e para “desconstruir estereótipos”. E discorda que o uso de narrativas indígenas por autores brancos seja necessariamente classificado como “apropriação cultural”.

— É bom que autores escrevam para dar notoriedade às culturas indígenas. Desde que sejam cuidadosos, senão serão criticados pelos próprios indígenas, que estamos atentos a como nossos saberes têm sido utilizados — diz ele, que, na terça-feira (8) conversa com Leonardo Boff sobre o livro “O casamento entre o céu e a terra” na Livraria da Vila do Shopping Higienópolis, em São Paulo.

‘Mestres e doutores’

Teólogo e professor emérito da Uerj, Boff ouviu certa vez de representantes dos sami, povo nativo do Norte da Escandinávia, a seguinte pergunta: “Os índios do Brasil ainda casam o céu com a terra?” Prontamente respondeu que sim, pois desse matrimônio nasce tudo o que existe. Em “O casamento entre o céu e a terra”, ele narra mitos sobre a descoberta do fogo, a origem do guaraná e da mandioca, dilúvios e virgens que dão à luz a filhos predestinados a missões grandiosas. Boff chama os indígenas de “nossos mestres e doutores” e ressalta a importância de “revisitar a sabedoria” desses povos.

— Temos que aprender com eles a habitar o planeta, a superar nosso materialismo e a nos abrir à dimensão espiritual do ser humano, que é veneração, respeito, cooperação, convivência pacífica, cuidado e entrega à energia poderosa que tudo sustenta e nos leva a desejar viver e nos relacionarmos ilimitadamente, pois somos um projeto infinito — defende Boff, que ganhou seus primeiros livros sobre as cosmologias indígenas do antropólogo Darcy Ribeiro, cujo centenário de nascimento foi comemorado em 26 de outubro.

Aparecida Vilaça concorda que os indígenas têm lições valiosas a dar, mas reforça que esses ensinamentos não se limitam a uma espécie de “decálogo para a proteção da natureza”.

— Não podemos ter uma postura utilitarista diante da sabedoria indígena. Temos que ler, nos emocionar, nos identificar, nos colocar no lugar deles. Devemos ler as narrativas indígenas como lemos a filosofia ocidental, porque elas são filosofia — diz. — Os indígenas são intelectuais que têm muito a nos ensinar sobre ética, ecologia e como nos relacionar com os outros seres.

Serviço:

"Ficções amazônicas"

Autores: Aparecida Vilaça e Francisco VIlaça Gaspar. Editora: Todavia. Páginas: 216. Preço: R$ 69,90.

"Aqui. Neste lugar".

Autora: Maria José Silveira. Editora: Autêntica Contemporânea. Páginas: 224. Preço: R$ 54,80.

"O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas do Brasil"

Autor: Leonardo Boff. Editora: Planeta. Páginas: 240. Preço: R$ 56,90.

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