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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Para os yanomami, o que se passa nos sonhos é tão importante quanto o que se vivencia desperto. A vida onírica é fonte de conhecimento (permite que os mitos continuem vivos) e dá lições de política. Essas foram algumas das descobertas da antropóloga Hanna Limulja, autora de “O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami”. Em entrevista ao GLOBO, ela afirma que o garimpo tem impedido os indígenas de sonhar.

A antropóloga Hanna Limulja, autora do livro "O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami", publicado pela Ubu — Foto: Arquivo pessoal
A antropóloga Hanna Limulja, autora do livro "O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami", publicado pela Ubu — Foto: Arquivo pessoal

Como os indígenas concebemo sonho?

Para os ameríndios, o sonho tem mais relevância do que para os brancos. Os guarani mbya têm um ritual em que se fuma o cachimbo e se compartilha os sonhos com os outros. Os yanomami têm o hereamu, um discurso cotidiano, que ocorre no centro da casa, em que se compartilha várias coisas e, eventualmente, um sonho. O que é vivido em sonho é tão importante quanto o que é vivido em vigília. Para falar do sonho, eles usam um tempo verbal que indica que aquele que fala viveu realmente a experiência narrada.

Você escreve que, para os yanomami, diferentemente da psicanálise, o sonho não revela o inconsciente de quem sonha, mas o “desejo manifesto de um outro”. Como assim?

A diferença primordial entre a nossa forma de estar no mundo e a ameríndia é que eles concebem o mundo através do outro. O sonho não é motivado por mim, mas por um outro que é fundamental para pensar a existência, o mundo.

Isso revela uma dimensão política do sonho yanomami?

Sim. Kopenawa diz que, para os brancos, política é um emaranhado de palavras usadas para tomar as terras indígenas. Para os yanomami, política são as palavras recebidas nos sonhos, por meio das quais eles conseguem ver as coisas como elas verdadeiramente são. O sonho é, por excelência, o lugar da diplomacia, onde se entra em contato com outros seres (brancos, espíritos) com quem se dialoga e se estabelece relações. As palavras recebidas nos sonhos são usadas nos discursos dos xamãs para defender a floresta. São palavras de mediação.

Para os yanomami, quem sonha muito é considerado sábio. Qual a relação entre sonho e conhecimento?

Os yanomami conhecem os mitos porque eles são vivenciados pelos xamãs nos sonhos. Os efeitos da yãkoana, uma substância psicoativa ingerida pelos xamãs, se prolongam nos sonhos e permitem que eles vivenciem os mitos. Os mitos não morrem porque ainda são sonhados. A morte é tabu para os yanomami. Tudo o que se refere ao morto é obliterado. O sonho é a única maneira de conhecer o mundo dos mortos e reencontrar os que já se foram, o que é perigoso e pode resultar na morte do sonhador, que se coloca como objeto do desejo do morto. No sonho, eles também conhecem outros lugares. Um xamã me disse que conhecia São Paulo porque já havia vindo para cá em sonho.

Como a cultura yanomami entende os pesadelos?

Eles não têm uma palavra para pesadelo. Existem sonhos ruins, como sonhar com cobra, que motiva a não sair de casa. E sonhos ruins que se têm longe de casa. Em “A queda do céu”, Kopenawa narra vários pesadelos que teve sobretudo quando saiu do Brasil para fazer a campanha pela demarcação das terras yanomami. O pesadelo dos yanomami é o garimpo. Nas regiões invadidas por garimpeiros, ouve-se barulho de motor de balsa e de avião 24 horas por dia. Os yanomami não conseguem mais nem dormir nem sonhar.

Capa do "O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami", da antropóloga Hanna Limulja, publicado pela Ubu — Foto: Reprodução
Capa do "O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami", da antropóloga Hanna Limulja, publicado pela Ubu — Foto: Reprodução

Serviço:

"O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami"

Autora: Hanna Limulja. Editora: Ubu. Páginas: 192. Preço: R$ 59,90.

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