Livros
PUBLICIDADE

Por Talita Duvanel — Rio de Janeiro

A parede do quarto do paulistano Tiago Valente está tomada de páginas de “A mandíbula de Caim”. Não que o jovem de 24 anos não tenha apreço pelo sacralidade de um livro. É que a obra de 216 páginas da editora Intrínseca é feita mesmo para ser depenada. Todas as folhas são destacáveis, porque foram impressas fora de ordem. A missão de um leitor como Tiago é organizar a narrativa e descobrir quem são os seis mortos e seus respectivos assassinos.

Esta trend literária do TikTok — a hashtag com o nome do livro, lançado há 20 dias, tem 2,6 milhões de visualizações — é, na verdade, um mistério publicado originalmente em 1934 pelo inglês Edward Powys Mathers, sob o pseudônimo Torquemada. É considerado um dos maiores desafios do mundo: até hoje, só quatro pessoas desvendaram a ordem certa de publicação das páginas. Os dois primeiros foram ainda nos anos 1930, Sydney-Turner e WS Kennedy, que ganharam 25 libras na época. O mais recente “Sherlock Holmes” da vida real foi o comediante John Finnemore, em 2020. Ele entrou num concurso promovido pela editora inglesa responsável por trazer “A mandíbula de Caim” de volta às prateleiras em 2019, depois de um longuíssimo esquecimento.

— Faz mais de um ano que eu conheci o livro na conta de um booktoker (influenciador de literatura no TikTok) gringo. Era muito viral lá fora — diz Tiago, que também é booktoker (@otiagovalente), com mais de 400 mil seguidores. — A gente se coloca no lugar do investigador, como se fôssemos o Hercule Poirot e a Miss Marple (detetives) da Agatha Christie. Eu pedia para as editoras trazerem este livro para o Brasil.

O pedido de Tiago tinha sentido. Está em consonância com o sucesso recente da literatura policial, diz Lucas Telles, editor da Intrínseca, que adquiriu os direitos no segundo semestre do ano passado. Nas livrarias há 20 dias, a obra já vendeu 60 mil exemplares. Até o fechamento desta edição, era o oitavo livro mais vendido de todo o site da Amazon brasileira.

— Esse sucesso aparece junto com o crescimento do mercado de suspense em geral. O leitor tem a chance de fazer o que viu em todas as séries de detetives, colando as páginas na parede, por exemplo — diz Lucas.

A paulistana Giulia Ribeiro, de 24 anos, também decorou a casa com a papelada e tem registrado o processo de leitura nas redes. O primeiro vídeo sobre o tema teve mais de 500 mil visualizações no TikTok (@spinnightshade) e ela criou até um grupo no Telegram para fãs da narrativa.

—A ideia é trocar percepções, mas que não tenha muito spoiler — diz.

Giulia Ribeiro, fã de 'A mandíbula de Caim' — Foto: Arquivo pessoal
Giulia Ribeiro, fã de 'A mandíbula de Caim' — Foto: Arquivo pessoal

Em jogo

Não é um fenômeno restrito a jovens. Pouco afeito às redes, o escritor e professor Marco Lucchesi, cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras (ABL), pode não ter detalhado sua rotina no TikTok, mas foi completamente fisgado pela engenhosidade de Torquemada. Está nessa missão há quatro anos, antes mesmo de sair a tradução em português, num vaivém constante de leitura.

— Naveguei algum tempo, precisei abandonar o livro, pensar hipóteses. Ele desafia. Não cheguei a uma solução específica a não ser compreender alguns parâmetros que o autor utiliza — diz Lucchesi. — O que me interessa são os mecanismos de pensamento. Este livro propõe uma forma radical do jogo literário.

Giulia também teoriza sobre outra proposta de “A mandíbula de Caim”: mudar o imediatismo do mundo booktoker, frequentemente pautado pela quantidade:

— Percebo que existe uma competição de consumir os livros de forma muita rápida, e essa obra não é simplesmente ler do começo ao fim. Tem uma forma diferente de engajar. Ele muda aquela coisa de “li cem livros”.

Se essa jovem geração de leitores é pautada pela velocidade e quantidade, ela está preparada para lidar com a decepção? Afinal, a chance de descobrir a resposta final (sem olhar num fórum qualquer do Google) é bem pequena.

— Muitas vezes, o público mais jovem manifesta uma certa frustração se o final for mais aberto — diz Lucas. — “A mandíbula de Caim” é uma nova experiência. Se você se propõe a entrar nele, vai ter um retorno. E existe a combinação certa, mas há caminhos possíveis.

Há 158 combinações plausíveis de ordenação de páginas, mas apenas uma é correta. Como saber qual? E quem matou e quem morreu? Há uma “folha de respostas” para ser enviada à editora pelos Correios (lugar onde muitos dos booktokers nunca devem ter pisado). Caso as soluções estejam corretas, a Intrínseca promete entrar em contato. A editora informa que, até agora, nenhum leitor se arriscou a enviar a sua aposta.

— Talvez hoje tenhamos mais ferramentas para solucionar os mistérios — diz Tiago, que acredita viver num mundo mais colaborativo graças à vida on-line. — Mas o que vale é a diversão do processo.

A mandíbula de Caim.
Autor:
Torquemada. Editora: Intrínseca. Preço: 49,90.

Mais recente Próxima
Mais do Globo

Ex-presidente Jair Bolsonaro é quem mais afasta eleitores, diz pesquisa

Datafolha aponta que 56% podem mudar voto para prefeitura de SP por rejeição a padrinho político

Casal teria retomado acordo milionário com serviço de streaming pra realizar novo documentário sobre realeza britânica

'Em pânico': família real teme novo projeto de príncipe Harry e Meghan Markle, diz site; entenda

Idade avançada continua sendo motivo de preocupação para seus colegas exilados, que temem que Pequim nomeie um sucessor rival para reforçar seu controle sobre o Tibete

Dalai Lama diz que está em bom estado de saúde após cirurgia nos Estados Unidos

Mikel Merino deu a volta na bandeira de escanteio para homenagear o genitor após selar a vitória espanhola na prorrogação

Pai de 'herói' da Espanha na Eurocopa marcou gol decisivo contra alemães no mesmo estádio há 32 anos; compare

Com os criminosos foram apreendidos drogas, dinheiro, máquina de cartão de crédito e diversos celulares roubados

Polícia Civil prende em flagrante três homens por tráfico e desarticula ponto de venda de drogas no Centro

Sem citar caso das joias, ex-presidente citou ‘questões que atrapalham’ e criticou a imprensa

Após indiciamento por joias, Bolsonaro é aplaudido em evento conservador ao dizer estar pronto para ser sabatinado sobre qualquer assunto

Embora Masoud Pezeshkian tenha sido eleito com a defesa do diálogo com nações ocidentais, decisões sobre política externa ou nuclear permanecem sob aiatolá Ali Khamenei

Vitória de candidato moderado no Irã pode aliviar, mas tensões nucleares não vão acabar, dizem analistas