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Por Silvio Essinger

A história da contracultura brasileira não pode ser escrita sem que se fale de uma aldeia de pescadores a alguns quilômetros de Salvador — um lugar paradisíaco que, apesar da proximidade com a capital baiana, era praticamente isolado e acabou se tornando refúgio para milhares de jovens do mundo inteiro que perseguiam a utopia hippie. Quase 50 anos depois do seu verão mais fulgurante, o livro “Arembepe, aldeia do mundo: sonho, aventura, e histórias do movimento hippie” (Máquina de Livros) chega como resultado de uma tentativa de organizar a memória e desfazer mitos sobre a meca do desbunde.

Escrito pelos amigos Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira (que passaram cinco anos reunindo informações para compor a publicação) e ilustrado pelos desenhos do artista plástico John Chien Lee (todos feitos nos anos 1970, quando ele morou na vila e se dedicou a registrar com seu traço o cotidiano da aldeia), “Arembepe” é o documento de uma realidade quase irreal — o registro do que aconteceu entre 1968 e 1973, quando jovens urbanos de classe média ou alta se dispuseram a dividir a existência franciscana com pescadores e suas famílias, enquanto realizavam experimentos comportamentais, sexuais e lisérgicos num Brasil em plena ditadura militar.

De Mick Jagger, Janis Joplin, Roman Polanski e Jack Nicholson a Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Novos Baianos, Glauber Rocha, Rita Lee e José Simão, muitas foram as figuras célebres que passaram por Arembepe, santuário ambiental cujo nome em tupi-guarani quer dizer “a terra que nos envolve”. Jornalista que foi à aldeia pela primeira vez em 1992, “atraída pelas histórias da contracultura, achando que ia encontrar Baby Consuelo”, e que desde 2012 tem uma pousada lá, Claudia Giudice iniciou o projeto do livro com um plano: o de “eternizar esse lugar mágico e mítico que ainda atrai muitas pessoas”.

— Comecei a escrever em 2016. Abri um perfil no Facebook e saí procurando pessoas que me contassem histórias de Arembepe. Pouco depois, o Sérgio Siqueira e o Lula (Luiz Afonso) lançaram o livro “Anos 70 Bahia”, que eles também tinham começado pela internet. Ficamos amigos e continuamos colecionando histórias — conta Claudia, que junto com os coautores lança “Arembepe” em noite de autógrafos na quarta (dia 7), na Livraria da Travessa do Shopping Iguatemi, em São Paulo.

Foto do o livro "Arembepe, aldeia do mundo", de Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira — Foto: Divulgação
Foto do o livro "Arembepe, aldeia do mundo", de Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira — Foto: Divulgação

Publicitário, jornalista e escritor, Luiz Afonso, hoje com 72 anos, recorda-se de ter chegado a Arembepe ainda adolescente — um mergulho com roupa e tudo no Rio Capivara foi, ao mesmo tempo, batismo e epifania para ele.

— Colhemos depoimentos de pessoas muito importantes que estiveram lá — diz Lula, que credita ao “cadinho multicultural de Salvador” o atalho para que tantas almas tivessem chegado ao paraíso hippie na Bahia. — Durante 200 anos, o Porto de Salvador foi o mais importante do Hemisfério Sul, já existia uma cultura cosmopolita. A isso se somou a força da cultura negra. E o povo baiano sempre foi muito festeiro, acolhedor. Naquela época as pessoas estavam vivendo a utopia da novidade, do paraíso. E Arembepe é um santuário ecológico, as pessoas podiam viver lá com pouco dinheiro e pouquíssima roupa. Arembepe foi um lugar onde ancestralmente moraram tupinambás, então o espírito da aldeia já estava presente.

Beleza fantástica

Publicitário, Sérgio Siqueira, de 70 anos, tem na lembrança uma Salvador de pós-Tropicália, com o cinema transgressor de Glauber Rocha, Moraes Moreira botando sua voz no trio elétrico durante o carnaval, Caetano e Gil de volta do exílio e a Praça Castro Alves surgindo como um espaço de liberdade.

— Era um movimento cultural como nunca houve! E todo mundo que chegava a Salvador, você levava logo para conhecer Arembepe. As pessoas ficaram deslumbradas com aquele lugar praticamente intocado, de uma beleza fantástica, porque envolvia rio, lagoas, dunas e mar — explica.

Uma dessas pessoas que se deslumbraram com Arembepe foi o chinês John Chien Lee, que no início dos anos 1970 era um jovem e bem-sucedido publicitário de São Paulo. “Apesar de tudo, eu sentia uma insatisfação interior, além de estar revoltado e impotente com a situação política. Vivíamos em plena ditadura militar! Renunciei a tudo o que tinha”, escreveu ele no livro, para o qual cedeu as ilustrações que produziu “como uma forma de gravar para sempre aqueles momentos e lugares maravilhosos” e que guardou por muitos anos “pois as considerava algo muito íntimo.”

— Quando revejo aqueles desenhos feitos há quase meio século, eles me emocionam profundamente. Como dizem, a vida é feita de momentos, que são efêmeros, que nos escapam e são distorcidos com o tempo. Mas um desenho é uma prova incontestável da minha percepção, especialmente se foi feito com pessoas tão especiais como foi em Arembepe naqueles tempos — conta ele, por e-mail, de Portugal, onde vive hoje.

Ilustração de John Chien Lee do livro "Arembepe, aldeia do mundo", de Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira — Foto: Reprodução
Ilustração de John Chien Lee do livro "Arembepe, aldeia do mundo", de Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira — Foto: Reprodução

John Chien Lee foi um dos muitos arembepenses que Claudia, Lula e Sérgio encontraram por intermédio das redes sociais e que contam as suas histórias no livro. Lá estão também figuras como o antropólogo americano Conrad Kottak, que visitou Arembepe 16 vezes, entre 1962 e 2012, e que escreveu para a Universidade de Columbia, em Nova York, “Assault on paradise”, pesquisa sobre as transformações econômica e social ocorridas na aldeia ao longo de quatro décadas.

Outra foi Vera Valdez, ex-modelo de Coco Chanel que foi viver em Arembepe nos anos 1970 e passou a seguir a moda livre: ou seja, o nu. E quem também se guiava por essa moda era outra musa da comunidade, a recifense Sandete Ferrão. “Eu vivia nua mesmo. Não gosto de usar roupa desde criança. Até hoje não gosto. Naquela época, eu só tinha uma camisola branca, linda, bordada, que tinha sido do casamento da minha mãe. Era com ela que eu ia para Salvador, quando precisava”, conta no livro Sandete.

Eram tempos nos quais “a Aids ainda não existia e o prazer não tinha bandeiras”, como relata ao livro o poeta e jornalista argentino Fernando Noy, outro arembepense emérito: “Naqueles tempos, a palavra suruba era não somente parte do dicionário, dava o toque de festa suprema para todos os sentidos.”

E se o sexo era livre em Arembepe, também era o consumo de LSD. No livro, Vera Valdez confidencia que, em determinado verão por lá, era mais fácil achar ácido do que maconha.

— O LSD era fácil de transportar, bastava pingar na roupa. Os estrangeiros traziam de monte e você quase nem sabia o que era aquilo — recorda-se Sérgio Siqueira.

Capa do livro "Arembepe, aldeia do mundo", de Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira — Foto: Reprodução
Capa do livro "Arembepe, aldeia do mundo", de Claudia Giudice, Luiz Afonso Costa e Sérgio Siqueira — Foto: Reprodução

Tudo isso fazia com que, no começo dos anos 1970, Arembepe fosse aquele lugar de onde as famílias tradicionais da Bahia não deixavam os seus filhos sequer passar perto. E um desses pais zelosos era ninguém menos do que o escritor Jorge Amado, que via com horror os hippies de lá e até se inspirou neles para compor o protagonista de um romance inacabado, “Bóris, o vermelho”. Jorge andou frequentando Arembepe a pedido dos amigos Samuel Wainer e Fernando Sabino, cujas filhas tinham fugido de casa para o refúgio baiano da contracultura.

O hoje consagrado jornalista humorístico José Simão era um dos hippies com os quais Pinky Wainer, filha de Samuel, estava em Arembepe. “Morei lá por três meses com a Pinky e a Vera Valdez. Não lembro muito bem, mas acho que eu dormia numa canoa no quintal. Colocava uma almofada e dormia ao relento, vendo as estrelas. Me lembro também que, às vezes, a Gal Costa aparecia para nos visitar. Vinha linda, com um vestido comprido, transparente”, conta Simão no livro.

O jornalista José Simão, em Arembepe, nos anos 1970 — Foto: Divulgação
O jornalista José Simão, em Arembepe, nos anos 1970 — Foto: Divulgação

Arembepe foi de Gal, mas também de Janis Joplin (que em 1970, pouco antes de morrer, morou por lá e chegou a namorar um pescador) e de Mick Jagger (que de fato passou por lá, em 1968, quase anônimo, mas não chegou a morar na aldeia — um dos mitos que o livro cuida de desfazer). E ainda do diretor Roman Polanski e dos atores do filme “Easy rider” (por aqui, “Sem destino”) Jack Nicholson e Dennis Hopper, que se encantaram com o cineminha solar criado pelo artista plástico Cândido de Alencar — esse, uma espécie de guru, que dizia fazer contato com extraterrestres naquele paraíso em que muitos outros relatavam constantes visões de discos voadores.

Muito do que aconteceu em Arembepe era apenas do conhecimento dos iniciados. Mas só até o verão de 1973, o auge da movimentação hippie no local (e o começo do fim do sonho), com mais de 3 mil pessoas se mudando para lá depois do carnaval em Salvador. Como lembra Claudia Giudice, nessa época Caetano e Gil já tinham voltado de Londres e foi publicada uma matéria da revista “Veja”, falando do pessoal que ia para Arembepe acampar, com suas barracas.

— Isso acabou criando uma mitologia, os jovens sonhavam com esse Éden — diz a jornalista, que estará com Lula e Sérgio em um lançamento do livro também em Arembepe, no parque Cacimbão, no dia 7 de janeiro.

Preservação

Dos anos 1970 para cá, poucas foram as iniciativas de preservar e divulgar a memória das atividades contraculturais na aldeia baiana. Em 2019, saiu “Aldeia hippie de Arembepe museu vivo”, livro com o qual Sérgio e Lula colaboraram, organizado por Gringo Cardia e Luiz Miguez para a Prefeitura de Camaçari (algumas cópias foram impressas, mas a circulação da publicação foi restrita). Hoje, segundo Claudia, apesar de Arembepe estar “arrumadinha”, ela não tem um museu de fato:

— A gente está aprendendo a viver bem sem o poder público. Nosso livro é um jeito bom de você contar histórias e de preservar a memória dessa aldeia do mundo.

Já para Sérgio Siqueira, o grande barato de Arembepe hoje é que a aldeia se tornou um “símbolo da resistência”:

— Num lugar daqueles, que vale uma fortuna, nem a prefeitura, nem a construção civil conseguiram tirar quem vivia lá. Isso é maravilhoso!

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