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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Ao receber o Prêmio Nobel, no último dia 7, a escritora francesa Annie Ernaux disse que continua a se questionar sobre o lugar ocupado pelas mulheres na literatura. A legitimidade das escritoras, afirmou, ainda não foi de todo reconhecida. “Há intelectuais homens para quem os livros escritos por mulheres simplesmente não existem”, provocou. “O reconhecimento do meu trabalho pela Academia Sueca é um sinal de justiça e de esperança para todas as escritoras”. De fato, a igualdade de gênero está longe de se tornar realidade no mercado editorial e ainda se ouve por aí a expressão “literatura feminina”, como se a produção das escritoras, por abordar experiências próprias das mulheres, pertencesse a um cânone diferente da dos homens, esta sim apta a tratar de preocupações universais.

No entanto, o ano de 2022 atesta que não dá mais para ignorar as escritoras. A começar pelo êxito de Ernaux, cujo projeto literário de “vingar” sua classe social e seu sexo arrematou o Nobel de Literatura. Na esteira da “Ernauxmania”, a francesa vendeu mais de 45 mil livros no Brasil este ano. E ela nem está no topo da lista. Ernaux também foi a principal estrela da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que voltou ao formato presencial e lotou as ruas da cidade histórica com uma programação marcada pela pluralidade.

A autoria feminina também tem agradado a crítica: os cinco finalistas ao Prêmio Jabuti de Melhor Romance eram mulheres. As principais categorias do mais tradicional prêmio da literatura brasileira foram vencidas por escritoras: Poesia (Luiza Romão), Conto (Eliana Alves Cruz) e Romance (Micheliny Verunschk). Romão também levou o Livro do Ano com “Também guardamos pedras aqui” (Nós). Em junho, de norte a sul do país, escritoras se juntaram para “fotos históricas” em locais como as escadarias do Theatro Municipal, no Rio, e do Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Para entrar na foto, bastava ser mulher e ter ao menos um livro publicado. Neste ano, o Brasil também perdeu duas de suas maiores prosadoras: Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon. Por essas e por outras, não é exagero dizer que as mulheres dominaram a cena literária de 2022.

Sem fetiches

O boom das escritoras mulheres ocorre num momento em que o mercado editorial, embora bem das pernas, passa por uma desaceleração. No ano passado, o setor cresceu 29% em volume e faturamento. De janeiro até 4 de dezembro deste ano, porém, as vendas subiram apenas 2,64%. Segundo o Painel do Varejo de Livros no Brasil, o faturamento cresceu 4,79% apoiado no aumento do preço médio (4,79%).

Diretora executiva do Grupo Autêntica, Rejane Santos levanta algumas hipóteses para explicar o sucesso das mulheres. A maioria do leitorado brasileiro é feminino. Segundo a última pesquisa Retratos da Leitura, de 2019, elas são 54% dos leitores e a maioria dos que preferem “livros de literatura” (56%). Mas não é só isso: também há mais mulheres escrevendo — e bem. A maioria dos manuscritos submetidos à editora, por agentes literários ou pelos próprios autores, são assinados por mulheres. Tanto que, dos dez autores publicados este ano pelo selo literário Autêntica Contemporânea, oito são mulheres. Por fim, Santos ressalta que as escritoras têm se provado corajosas ao abordar temas que ainda são tabus — como aborto e saúde mental — e rejeitar estereótipos.

— É uma literatura com personagens demasiadamente humanas, nada fetichizadas ou idealizadas. Não tem mulherzinha, não! Tem figuras combativas, perversas, complexas. Para nós, leitoras, é isso é sensacional — comemora.

A imprensa internacional até já cunhou um nome para descrever a onda de livros sobre mulheres que tão controversas quanto os tais “homens complexos” da era de ouro das séries de TV (Tony Soprano, Don Draper etc.): female rage (fúria feminina). Protagonistas meio destetáveis também têm dado as caras na literatura brasileira, em romances como “Com todo o meu rancor”, de Bruna Maia, “A pediatra”, de Andréa Del Fuego, e “Os coadjuvantes”, de Clara Drummond. Maia suspeita que as escritoras têm descarregado na literatura “a raiva acumulada durante gerações”.

— As mulheres estão se sentindo mais confortáveis para admitir sentimentos que costumávamos reprimir. Antes, as heroínas tinham que ser bondosas, guerreiras, melodramáticas. Ou se redimir no final — diz. — Elena Ferrante contribuiu muito para essa mudança ao fazer uma literatura popular que expõe a feminilidade de uma maneira muito livre.

Diretora editorial da Fósforo, Rita Mattar cita uma frase de Annie Ernaux, autora que ela publica, na tentativa de explicar por que a literatura escrita por mulheres tem feito tanto barulho. “Me parece que, de modo geral, as mulheres têm mais coisas a dizer, que ainda não foram ditas”, disse Ernaux à edição brasileira da revista Marie Claire, em 2021.

— As mulheres têm tanto a dizer porque passaram tanto silenciadas — arrisca Mattar, que aponta ainda um outro aspecto da ascensão da literatura escrita por mulheres: o resgate, aqui e lá fora, de autoras do passado que, ou não receberam a devida atenção em seu tempo e amargaram décadas fora de catálogo (como Lucia Berlin, Alba de Céspedes e Aurora Venturini) ou vêm sendo descobertas por novas gerações de leitores (como Marguerite Duras e Natalia Ginzburg).

Mas resta a pergunta: o lugar ocupado pelas mulheres na literatura foi enfim legitimado ou se trata apenas de mais uma dessas ondas que, vira e mexe, atingem o mercado editorial e refluem rapidamente? Para Mattar, a resposta ainda não está dada:

— Se aprendemos alguma coisa, é que o progresso não é inevitável. Não acho que o sucesso das autoras mulheres veio para ficar nem que é uma moda passageira. Temos que continuar publicando boas autoras para que o que em 2022 foi uma tendência se torne um fato.

Outros destaques

Colleen Hoover e Carla Madeira: as best-sellers

A escritora mineira Carla Madeira, autora do best-seller "Tudo é Rio" — Foto: Rebecca Maria
A escritora mineira Carla Madeira, autora do best-seller "Tudo é Rio" — Foto: Rebecca Maria

Em 2022, ninguém vendeu mais livros no Brasil do que a americana Colleen Hoover (com mais de 1,87 milhões de exemplares). Na ficção nacional, o fenômeno Carla Madeira (acima) se consolidou: foram mais de 164 mil livros vendidos. O destaque ficou para sua estreia, “Tudo é rio”, narrativa que se divide entre delicadeza e ousadia ao relatar uma paixão incomum envolvendo mulheres de personalidades fortes.

Aposta feminina nas livrarias de rua

Martha Ribas e Leticia Bosisio, sócias da Janela Livraria, no Jardim Botânico — Foto: Ana Branco
Martha Ribas e Leticia Bosisio, sócias da Janela Livraria, no Jardim Botânico — Foto: Ana Branco

Com curadoria fina e ampla oferta de cursos e eventos, as livrarias de rua estão bombando. Em São Paulo, o agito é na Megafauna, no Centro; no Rio, a Janela, criada por Martha Ribas e Leticia Bosisio no Jardim Botânico, deu tão certo que vai abrir uma unidade no Shopping da Gávea. Dos dez livros mais vendidos este ano, sete foram escritos por mulheres: Rosa Montero, Isabel Allende, Carla Madeira (que emplacou dois títulos), Andréa Del Fuego, Guadalupe Nettel e Juliana Leite. Nas palavras de Martha, “2022 foi o ano do encontro-reencontro porque sempre tivemos autoras, mas agora assumimos e aprofundamos essa relação. Ler mulheres é uma alegria”. Prova disso está no clube Janela para o Mundo, coordenado pela jornalista Cláudia Lamego, que inicialmente pretendia ler autores estrangeiros (homens e mulheres), mas acabou se dedicando exclusivamente a escritoras. Sucesso total.

Ancestralidade mostra sua força na literatura

Eliana Alves Cruz, vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Contos com "A vestida" — Foto: Hermes de Paula
Eliana Alves Cruz, vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Contos com "A vestida" — Foto: Hermes de Paula

Aos 56 anos, a carioca Eliana Alves Cruz (acima) fechou 2022 comemorando o Prêmio Jabuti de Contos com seu livro “A vestida: contos”, com narrativas centradas em temas como ancestralidade, antirracismo, feminismo e problemas sociais do país. Foi uma aposta acertada da autora de obras como “Água de barrela”, contando a história de sua família desde os tempos da escravidão, e “O crime do cais do Valongo”, entre outros títulos. A força feminina também sustenta projetos como o Leia Mulheres, que promove a leitura apenas de escritoras. Segundo sua criadora, Juliana Leuenroth, no início, era difícil indicar livros que não fossem de autoras já consagradas ou publicados por grandes editoras. Entretanto, a enxurrada de bons lançamentos com assinaturas femininas mudou o cenário. Para melhor. Hoje, o clube do livro está presente em mais de cem cidades brasileiras.

O jeitão excêntrico de Benjamín Labatut

Benjamín Labatut, um dos destaques da 20º Flip  — Foto: Hermes de Paula
Benjamín Labatut, um dos destaques da 20º Flip — Foto: Hermes de Paula

As mulheres fizeram bonito na Flip, mas não foram só elas que mereceram a atenção do público que esteve em Paraty. Fenômeno editorial em vários países, com obras traduzidas para 22 idiomas, o chileno Benjamín Labatut, de 42 anos, conquistou os brasileiros com seu jeito excêntrico e sua não ficção literária em diálogo com a ciência. Em “A pedra da loucura”, por exemplo, ele trafega entre a realidade e as armadilhas da mente. Em “Quando deixamos de entender o mundo”, investiga a vida de cientistas que perderam a razão para chegar ao "núcleo escuro no centro das coisas". Em 2023, sai por aqui um novo livro dele, “The Maniac”, que será lançado simultaneamente em vários países. Quem também chamou atenção por em Paraty foi o carioca Geovani Martins, que, quatro anos após o festejado livro de contos “O sol na cabeça”, lançou seu primeiro romance, “Via Ápia”, que desde já pode ser considerado forte candidato aos principais prêmios literários de 2023.

Literatura inspirada na experiência indígena de ver o mundo

O pensador indígena Ailton Krenak, autor de "Futuro ancestral" — Foto: Guito Moreto
O pensador indígena Ailton Krenak, autor de "Futuro ancestral" — Foto: Guito Moreto

O ano de 2022 também mostrou que editoras estão abrindo mais espaço para a literatura produzida por segmentos que tradicionalmente tinham muito pouco espaço no mercado editorial. Melhor que isso: o público está dando o seu aval. Um exemplo é o líder ambientalista Ailton Krenak, que se tornou não só um autor best seller como fonte para outros escritores preocupados em retratar temas contemporâneos ligados ao meio ambiente e à diversidade. Com livros como “Futuro ancestral”, lançado em 2022, Krenak chama a atenção para a riqueza da cultura indígena no país, servindo de inspiração para ficcionistas como Maria José Silveira, Carola Saavedra e Rita Carelli, que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura com o romance “Terrapreta”, que narra a trajetória de uma jovem que abandona sua vida de classe média em São Paulo para morar numa aldeia indígena do Alto Xingu.

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