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Por André Rosa; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro

Certa vez, o pensador russo Aleksándr Herzen escreveu que a literatura do seu país era uma ininterrupta condenação de sua sociedade. A sentença trágica fazia alusão à própria história do povo russo, com agruras e horrores que se traduziam em enredos escritos por alguns dos maiores autores da língua, como Aleksandr Púchkin (1799-1837), poeta maior e escritor que se deixou fascinar por uma sangrenta insurreição de cossacos e camponeses contra o governo no século XVIII, como mostra “A filha do capitão”.

Compondo um retrato fiel da Rússia antiga, Púchkin é o artista de um mundo que já se foi, com seus personagens ilustres e anônimos, peças de um quebra-cabeça que, em sua totalidade, registra a ascensão e queda de impérios e revoltas.

Publicado pela primeira vez em 1836, “A filha do capitão” trata de uma revolta real de camponeses e cossacos contra o império czarista russo entre 1772 e 1775, sob a liderança de Emilian Pugatchóv. Na trama, que divide, de um lado, o mundo camponês e, do outro, a nobreza, a vida do oficial fidalgo Piótr Grinióv se cruza com a do líder cossaco, que passa a se apresentar como o novo czar após a sublevação. Aqueles que se recusavam a reconhecê-lo enquanto tal eram condenados à pena capital e executados em praça pública.

Muito embora Púchkin não tenha poupado o leitor de toda a violência dos atos de Pugatchóv e de seu bando, o romance está longe de representá-lo com antipatia. Pelo contrário: ao proteger a vida de Grinióv em inúmeros momentos, o líder cossaco é retratado como alguém “grande no castigo e grande no perdão”, como ele costumava dizer entre os inúmeros provérbios populares que compõem a sua fala.

A propósito dessa linguagem, o crítico Iúri Lotman chama a atenção para a centralidade dos provérbios e outros ditos populares no romance, que constituem a personalidade de Pugatchóv e de outros personagens de baixa estratificação social.

Em Púchkin, a absorção do vocabulário popular vai além da caracterização dos tipos humanos: ela denota, antes de tudo, a cisão entre as duas classes, como na cena em que uma conversa entre dois cossacos soava incompreensível (“conversa de bandidos”) para o jovem nobre em seu primeiro contato com aqueles homens.

Ademais, a pesquisa de Púchkin em torno da Revolta de Pugatchóv não se limitou à leitura da História do império russo. O poeta peregrinou pela região que fora ocupada por Pugatchóv, no Sudeste da Rússia, e reuniu um vasto leque de informações sobre o episódio: notas de contemporâneos, recordações pessoais dos mais velhos, ditados populares e todo tipo de traço que poderia ser útil à sua empreitada.

'A filha do capitão', de Aleksándr Púchkin — Foto: Reprodução
'A filha do capitão', de Aleksándr Púchkin — Foto: Reprodução

Um historiador da literatura russa conta que foi nessa viagem que Púchkin ouviu falar de um oficial chamado Schvânvitch, que teria aderido ao bando de Pugatchóv e que acabou perdoado mais tarde pela czarina Catarina II (1729-1796), comovida pelas súplicas de seu pai. A história serviu para o escritor delinear dois personagens de “A filha do capitão”, e, a partir deles, elaborar o enredo: Schwabrin e Grinióv, este último suspeito injustamente de traição ao governo.

Além de descrever Pugatchóv com certa simpatia, também há uma crítica velada ao regime de Catarina II, com seus burocratas covardes que preferiam subornar os rebeldes a combatê-los, bem como os oficiais traidores que, na primeira oportunidade, tornaram-se delatores, ora em favor de Pugatchóv, ora em favor do império.

Mas, afinal, e o povo? Os habitantes da região sublevada receberam os rebeldes com pão e sal, símbolo de hospitalidade entre os russos. Tanto em seu romance quanto em seu estudo historiográfico, Púchkin não esconde a predileção do povo russo pelos rebeldes.

“Todo o povo” — escreve Púchkin — “estava ao lado de Pugatchóv, somente a nobreza se colocava abertamente ao lado do governo”.

Não é sem razão que o romance tenha sido publicado inicialmente sem a assinatura de seu real autor. Em todo caso, apesar da censura pessoal de Nicolau I (1796-1855) exercida à época, a sua publicação continua sendo um fato inexplicável.

Mestre estilista

A excelente tradução do russo feita por Boris Schnaiderman (1917-2016) não é recente: foi publicada pela primeira vez em 1949, pela editora Vecchi, sob o pseudônimo Boris Solomónov, nome de que se valeu o tradutor de origem ucraniana em seus primeiros trabalhos.

Assim como no fim da década de 40, a publicação de “A filha do capitão”, agora sob a cuidadosa coleção Leste da Editora 34, significa um fato literário capital para os leitores brasileiros: trata-se de uma obra-prima da literatura russa, escrita com realismo vigoroso por um dos maiores estilistas de seu tempo.

André Rosa é mestrando em literatura comparada pelo PPGCL-UFRJ/Capes

"A filha do capitão". Autor: Aleksándr Púchkin. Tradução: Boris Schnaiderman. Editora: 34. Páginas: 208. Preço: R$ 62. Cotação: Ótimo.

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