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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

O pensador Ailton Krenak compara a Terra Ianomâmi a um acampamento no escuro, que se torna visível à sociedade brasileira somente quando iluminada por um relâmpago. Desta vez, o relâmpago foi a missão do governo federal que desembarcou em Roraima no fim de semana e jogou luz sobre uma tragédia humanitária: os ianomâmis sofrem com ação do garimpo ilegal e casos graves de desnutrição, verminose e malária.

Krenak insiste que a situação dos indígenas seja tratada com a mesma gravidade que os ataques golpistas às sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro e pede a punição dos “algozes” dos ianomâmis.

Liderança indígena de destaque há décadas, ele foi um dos responsáveis pela inclusão do “Capítulo dos índios” na Constituição de 1988. Aos 69 anos, é também um dos pensadores mais populares do Brasil. Na quarta capa de seu novo livro, “Futuro ancestral”, o professor Muniz Sodré, da UFRJ, o chama de “filósofo originário”. Krenak recorre às cosmogonias dos povos indígenas para questionar conceitos forjados pelo pensamento ocidental — como o futuro. Seus dois livros anteriores são best-sellers, publicados em 13 países e vendidos para a produtora audiovisual Anonymous Content.

Ao GLOBO, Krenak afirma que “os algozes dos ianomâmis têm nome, e alguns continuam ocupando cargos públicos”.

A tragédia humanitária dos ianomâmis vem sendo denunciada por lideranças indígenas há tempos. Por que só agora ganhou esta proporção?

A terra dos ianomâmis é como um acampamento na escuridão. Quando um raio cai e produz um clarão, a opinião pública olha para lá e vê os ianomâmi morrendo. Dura o tempo de um relâmpago. O território ianomâmi já estava invadido nos anos 1980. Os garimpeiros foram expulsos no governo Collor, mas voltaram. Tem mais de 20 mil garimpeiros lá, embora o ex-vice-presidente (Hamilton) Mourão tenha dito que este número é inflado. Se ele diz que é inflado, deve saber quantos são. Ele anunciou uma força-tarefa contra o garimpo e deveria prestar contas do que foi feito. O governo Bolsonaro abriu a porteira para o garimpo, que dá muito lucro para governadores, senadores e generais. O que eles fizeram enquanto os ianomâmis morriam envenenados pelo mercúrio? Os algozes dos ianomâmis têm nome, e alguns continuam ocupando cargos públicos.

Por que o Brasil não olha para os indígenas?

A crise climática obrigou o mundo a olhar para a Amazônia, mas a humanidade de quem habita esse território continua sendo negada. Os territórios indígenas foram negligenciados e vilipendiados pelo Ministério da Saúde na pandemia. Agora, estamos olhando para os ianomâmis, mas os munduruku, na região do Rio Tapajós, também estão adoecendo por causa do mercúrio, sem ter o que comer, porque vivem do que o rio fornece.

Os indígenas têm ocupado a política. Artistas, escritores e pensadores indígenas, como você, têm cada vez mais prestígio. Isso não pode ajudar a população brasileira a enxergar os indígenas?

Não é a representatividade na cultura ou em espaços da política institucional que vai mudar a cabeça do povo brasileiro. Os indígenas são tratados como sub-humanos. Se representatividade da cultura protegesse alguém da violência, não haveria negros morrendo nas calçadas do mundo todo. A arte do povo preto é magistral, mas nem isso muda o racismo das pessoas.

O que é preciso fazer para mudar essa situação?

Os indígenas estão submetidos a uma injustiça tão grande que seria necessário um programa duradouro de assistência a essa população que foi expropriada do acesso a seus próprios rios. O que está acontecendo na terra dos ianomâmis é tão grave quanto o que ocorreu em 8 de janeiro. É o Brasil tentando se autoimolar. Do mesmo jeito que estão atrás dos invasores das sedes dos Três Poderes e de seus financiadores, é preciso ir atrás de invasores de terra indígena e financiadores do garimpo. Os ianomâmis precisam ser contados no rol da Humanidade. Por breves períodos, o Estado brasileiro suspendeu o assédio e a violência contra os ianomâmis. Mas o modus operandi do Estado brasileiro é negar aos ianomâmis o seu território e tentar, de toda maneira, acabar com eles. Aquela terra sempre foi alvo de interesses econômicos e militares.

Ao tomar posse como ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara disse que “o futuro é ancestral”, como também afirma o título do seu novo livro. Como o futuro pode ser ancestral?

A narrativa colonial se apoia em um conjunto de consensos, como a ideia do futuro como algo prospectivo, que ainda vamos alcançar. É pura ficção. Se você perguntar para um ianomâmi o que ele vai fazer no futuro, ele vai te responder: “Onde é isso?” A certeza de que estamos vivendo neste instante e de que virá outro imediatamente depois é muito diferente da ideia colonial de futuro, que serve à economia e à dominação. O conceito indígena de futuro está articulado à ancestralidade porque tudo que existe é o passado, o que já aconteceu. O futuro é ancestral porque está sendo produzido agora. Assim como o hoje foi produzido pelo ontem. Assim como a água que existe hoje é a mesma que existe desde que o planeta se configurou como o conhecemos. O futuro não é uma flecha movida para a frente. O futuro está aqui, agora, em todo lugar.

Como a noção de futuro ancestral se aplica à política?

A política hoje é uma espécie de prestidigitação, é uma aposta que às vezes dá certo e resulta em períodos de cooperação até que o prazo da aposta vence e começa a quebradeira geral. Na cultura ocidental, o caos não pode existir, porque ele nega a política colonial que vive de apostar no amanhã. O conceito de futuro ancestral é um freio à fúria desenvolvimentista e às ideias de progresso que nós herdamos do século XIX. Combate o aquecimento global e questiona a ideia de que a economia tem que crescer indefinidamente. Por que a economia tem que crescer sempre? Porque, se falarem o contrário, derrubam o governo! Mas dizer que a economia vai sempre crescer é uma mentira tão descarada quanto dizer para as pessoas que elas vão para o céu!

Nos últimos tempos, você passou a ser visto como pensador e filósofo. Historicamente, a filosofia ocidental rebaixou o pensamento dos povos originários. Como você recebe esse título?

Me sinto em boa companhia. Quando Davi Kopenawa publicou, junto com Bruce Albert (antropólogo francês), o magistral “A queda do céu”, que constitui uma cosmovisão ianomâmi, esse livro foi adotado em universidades do mundo todo. As narrativas coloniais que orientam a economia e a política resultaram numa humanidade cindida da natureza. Como disse a (escritora nigeriana) Chimamanda Ngozi Adichie, um mundo com uma História única está fadado ao desastre. A aceitação da minha fala em espaços onde ela era cancelada mostra a abertura a outras narrativas além da eurocêntrica, que nega a qualquer outra possibilidade de organização do mundo que não seja esta que está posta.

Como você lida com a expectativa de que o pensamento indígena contribua com soluções para os problemas que a Humanidade enfrenta, como as mudanças climáticas?

Qualquer pessoa se sentiria honrado em contribuir de alguma maneira para a gente sair desse caos em que estamos metidos. Mas no meu caso não é uma satisfação individual, porque o meu pensamento é coletivo. Não só porque é produzido em comunidade, mas porque nos afeta como coletividade, como planeta, como natureza. Os direitos não são exclusividade dos humanos. O planeta é um organismo vivo.

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