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Por Henrique Balbi; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro

Prêmio Nobel de Literatura de 2019, o austríaco Peter Handke consegue em “A segunda espada”, a partir de fiapos, criar uma tapeçaria. Minimalista, sua prosa poética captura os detalhes vibrantes de um ambiente, de personagens e, principalmente, da subjetividade de seu narrador, propondo uma viagem mais longa nas impressões deixadas do que no trajeto percorrido.

Durante a leitura, pode-se até esquecer a intriga supostamente central do livro: a vingança. O narrador — muito semelhante ao autor — não esqueceu uma acusação grave e talvez injusta contra sua mãe, por parte de uma jornalista. Sem plano meticuloso, sem algo mais definido do que a vontade de se vingar, o narrador sai de sua casa em busca do acerto de contas.

“Busca” é a palavra exata. O uso constante da digressão já alerta os desavisados de que a história não se encerrará com um clímax convencional, com o narrador e a jornalista frente a frente, tipo faroeste. Pelo contrário.

O livro de Handke prefere a apreensão meticulosa de coisas, pessoas e estados de alma que passariam despercebidos na pressa nossa de todo dia. O narrador descreve e apresenta um trabalhador português, apaixonado por uma mulher brasileira. Compartilha com um taxista o gosto pelas músicas de Eric Burdon (The Animals), adaptadas ou não para o francês. Escuta um juiz, seu vizinho, que se queixa dos abusos contra a Justiça. Fica intrigado pela única mulher que, numa viagem de ônibus, está imersa num livro.

O ônibus, aliás, indica outro elemento importante na construção deste romance contemplativo, de andamento livre e lento: os meios de transporte. O narrador caminha, toma bonde, anda de ônibus, passa por estações de trem. Está em movimento constante pelo entorno de Paris, com olhos e ouvidos atentos. Recria a seu modo a tradição romântica da “meditação itinerante”, praticando em outros modais os “devaneios do caminhante solitário”.

Pássaros e linguagem

A contrabalançar a deriva, entram em jogo dois elementos fundamentais. O primeiro, também afim à herança do Romantismo, é a atenção à subjetividade, que aqui surge capturada nas menores nuances, com um rico colorido verbal. Contemplação é a palavra-chave.

O desejo de vingança, por exemplo. Em vez de um impulso bruto, ele aparece decomposto como a luz através de um prisma. Há o ultraje, claro. Há a assertividade. Mas há também o júbilo de se olhar no espelho e reconhecer no próprio sorriso um sentido do que fazer e por quê. Há outros sentimentos menos nobres: a dúvida, a repreensão pela demora, o ressentimento cultivado por anos. A culpa de, num sonho, numa conversa com a mãe sobre a época da Segunda Guerra, ter lançado uma acusação parecida.

O outro elemento que dá liga às digressões do romance é o trabalho com a linguagem. Assim como nos “ensaios” de Handke, também lançados aqui pela Estação Liberdade, “A segunda espada” tem algo de poético na sua construção. São textos líricos, na verdade, nos quais o fio das imagens — sua recorrência, sua ressonância — impele a leitura.

Veja-se o caso dos pássaros. Preparando-se para partir, o narrador nos conta que “corvos gritavam, gralhas gemiam, chapins afiavam os bicos, papagaios asiáticos davam gritos estridentes, galos cantavam, pombas gemiam” (p. 72), mas quem se destaca é um tordo, que parece açular o narrador à vingança.

Ao final, porém, as supostas mensagens dos pássaros já não parecem tão unívocas. Quando retorna à sua região, o narrador diz que “um corvo na copa de um carvalho” (a tradução de Luis S. Krausz capta os efeitos poéticos do texto, como essa aliteração), o saúda de volta, “enquanto fazia reverências” (p. 131). Ao final do livro, mais ambíguo, o narrador não sabe se ouve um melro ou um rouxinol, que “não cantava, gritava”, “berrava” (p. 175).

O tordo, o corvo, o melro ou rouxinol. Pássaros que evocam toda uma tradição literária, como Edgar Allan Poe e John Keats, mas que sobretudo condensam as características deste romance de Peter Handke: o voo e o canto, o lirismo e a leveza. Por esse caminho, inclusive, o narrador realiza sua vingança idiossincrática. Só ao final se tem uma dimensão do desenho da tapeçaria, tecida sim com fiapos, mas também com mão segura, sutil e surpreendente.

*Henrique Balbi é escritor e professor de literatura

'A segunda espada’. Nota: bom. Autor: Peter Handke. Tradutor: Luis S. Krausz. Editora: Estação Liberdade. Páginas: 176. Preço: R$ 56.

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