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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

De volta às livrarias após um exílio de 43 anos, “Em câmara lenta”, do cineasta Renato Tapajós, é uma obra singular na História da literatura brasileira. Escrito no Presídio Tiradentes, em São Paulo, onde o regime militar trancafiava seus inimigos, o romance sobre a luta armada contra a ditadura (tema raro entre nós) mandou seu autor novamente para a cadeia, acusado de “apologia e incitação às guerras subversiva e revolucionária”.

Aos 79 anos, Tapajós, nascido em Belém e residente em Campinas, diz ao GLOBO que imaginava que “Em câmara lenta” fosse “um trabalho do passado”, que pouco interessaria aos leitores do presente. No entanto, de uns anos para cá, à medida que a palavra “golpe” voltava a ser repetida por aí, ele passou a ser instado a relançar o livro. A nova edição inclui trechos do processo judicial que a publicação original desencadeou.

“Em câmara lenta” é o único romance do autor, mais conhecido por documentários como “Linha de montagem”, registro das greves operárias no ABC paulista no fim dos anos 1970 e início dos 1980, e títulos infanto-juvenis, como “Carapintada”, no qual um rapaz, ao voltar de um protesto pelo impeachment de Collor, entra num túnel do tempo e vai parar nos chamados Anos de Chumbo.

Membro da Ala Vermelha, corrente do PCdoB que apostou na luta armada contra a ditadura, Tapajós foi preso em 1969. Na cadeia, seus companheiros fizeram a autocrítica da guerrilha.

— Concluímos que o caminho da luta armada para tomar o poder e implementar o socialismo era válido, mas superestimamos brutalmente a consciência revolucionária do povo. O exemplo dos guerrilheiros não foi suficiente para a adesão popular à luta armada — recorda ele, que, recentemente, assinou outra autocrítica, o documentário “Esquerda em transe”, sobre o desnorteio dos progressistas após a derrubada de Dilma Rousseff.

Ainda na prisão, de onde saiu em 1974, Tapajós preferiu fazer uma autocrítica mais íntima, literária. Começou a escrever “Em câmara lenta”, romance melancólico e fragmentário, que acompanha dois grupos de guerrilheiros, um urbano, acossado pela repressão, e outro metido na selva amazônica. O título faz referência ao gesto de uma guerrilheira, companheira do narrador, que tenta, discretamente, agarrar um revólver para se defender da polícia da ditadura. A cena é recordada diversas vezes ao longo do livro.

Trecho do parecer do crítico literário Antonio Candido em defesa de "Em câmara lenta", acusado pela ditadura de estimular a subversão — Foto: Reprodução
Trecho do parecer do crítico literário Antonio Candido em defesa de "Em câmara lenta", acusado pela ditadura de estimular a subversão — Foto: Reprodução

Os personagens são inspirados em pessoas de que o autor de fato conheceu. Até o ex-ministro petista José Dirceu dá as caras, durante a descrição da Batalha da Maria Antônia, confronto entre alunos da Faculdade de Filosofia da USP, onde Tapajós estudava, e o Comando de Caça aos Comunistas.

Após concluir o romance, Tapajós deu com um novo desafio: como retirá-lo do presídio?

— Copiava o romance em folhas de papel de seda com a menor letra que eu conseguia. Depois, dobrava continuamente cada folha, até que virar um quadradinho de um centímetro, um centímetro e meio. Envolvia os quadradinhos com plástico e durex. Quando me visitava, minha mãe saia da cadeia com essas “pílulas” sob a língua — recorda. — Em casa, com a ajuda de uma lupa, ela ditava o que estava escrito nas “pílulas” para o meu pai, que datilografava.

“Em câmara lenta” foi publicado em maio de 1977 pela Alfa-Ômega. Dois meses depois, a repressão prendeu o autor por considerar o livro “uma verdadeira profissão de fé, de ideologia e fanatismo” cujo objetivo era “difundir os erros e acertos da subversão” e “incentivar o ingresso de incautos em tal mister”. O romance foi efetivamente censurado, e Tapajós foi solto após intensa campanha da sociedade civil. Nessa segunda passagem pela prisão, não foi torturado, mas passou por um interrogatório insólito.

— Os policiais se arrogavam a postura de críticos literários. Queriam compreender mais do meu livro do que eu mesmo — ri Tapajós. — Eles destacavam trechos para provar que a minha intenção era fazer propaganda da luta armada.

Num parecer técnico anexado aos autos da defesa, Antonio Candido, professor da USP que fundou a crítica literária moderna no país, rechaçou a leitura dos policiais. Afirmou que “Em câmara lenta” não era um “retrato documentário”, mas um romance marcado pela ambiguidade, “escrito conforme uma técnica requintada de fragmentação do real”. “Um erro vulgar consiste em pensar que a força da literatura vem da realidade que descreve; quando, de fato, esta força provém do teor estético da linguagem usada”, ensinou o professor, que concluiu que o livro não convidava a subversão. Pelo contrário: “era uma sugestão indireta, não formulada, mas poderosa, contra a subversão”.

Com mais de cem filmes no currículo, entre documentários e peças publicitárias, Tapajós vem se reaproximando da literatura. Está escrevendo um romance memorialístico (e político) intitulado “Praça da República, nº 12” (endereço de sua infância, em Belém). O autor nasceu numa família de médicos comunistas e cresceu numa casa abarrotada de livros. Aos 10 anos, leu “A náusea”, romance existencialista de Jean-Paul Sartre. Confessa que não entendeu muita coisa e repete uma frase do narrador de “Em câmara lenta”: “Eu conheci o mundo pelos livros, só depois aprendi a reconhecê-lo na vida”.

Serviço:

"Em câmara lenta"

Autor: Renato Tapajós. Editora: Carambaia. Páginas: 192. Preço: R$ 69,90.

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