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Por Mateus Baldi; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro

“Muita coisa estranha já aconteceu neste mundo”, anuncia o narrador de “Happy hour”. De certa forma, esta parece ser a missão de Denis Johnson nas 11 histórias que compõem “Filho de Jesus”, publicado pela primeira vez no Brasil com ótima tradução de Ana Guadalupe. Trata-se de um relicário de muitas coisas estranhas que ajudam a contar a falência do sonho americano na segunda metade do século XX.

Filho de uma dona de casa e de um funcionário do Departamento de Estado ligado à CIA, o americano Denis Johnson nasceu em Munique, na Alemanha, em 1949, e passou a infância em Tóquio, Manila e Washington D.C. Ao longo de seus 67 anos, construiu um projeto literário robusto: analisar as diversas facetas de um país quebrado por dentro. Seu livro mais famoso, “Árvore de fumaça”, venceu o National Book Award e foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras, que também lançou a novela “Sonhos de trem” e o policial “Ninguém se mexe”.

Faltava lançar por aqui a estreia nos contos. Publicado em 1992, “Filho de Jesus” rapidamente se tornou um clássico. Em 1999, virou filme, dirigido por Alison MacLean e estrelado por Billy Crudup, e em 2006 foi considerado um dos melhores livros publicados nos EUA nos últimos 25 anos.

Longe da temporalidade

Tanta pompa não é sem razão. Narrados por um personagem que ora é protagonista, ora é um espectador privilegiado, “Filho de Jesus” se insere nos subterrâneos da literatura pós-moderna. Aqui, os coelhos podem estar vivos ou mortos, personagens vão e voltam, morrem e reaparecem vivos páginas depois, o metrô pode custar “cinquenta centavos, noventa centavos, um dólar” e a temporalidade dos fatos não importa — nada é definitivo e tudo é etéreo, como se envolvido por uma camada de brilho radioativo.

O conjunto acaba por formar um mosaico junkie do coração dos Estados Unidos no final do século passado, o legado das gerações que sucumbiram às guerras que, ao contrário do que os políticos faziam crer, devoraram o futuro pelas entranhas, consumindo-o em opioides e uma espiral de violência sem paralelos.

No bom conto, o que não está dito é mais importante do que a superfície, e Denis Johnson sabe explorar isso com algum charme, infiltrando na superestrutura do livro uma argamassa de paranoia e violência que muitas vezes é o que sustenta histórias como “O outro homem”. As elipses e as voltas que dá fazem mais pelo estilo do que a dicção do protagonista, um viciado cuja vida é uma colcha de retalhos.

Esse efeito caleidoscópico é uma das graças de ler “Filho de Jesus”, e em alguma medida lembra as “Nove histórias” de J. D. Salinger, publicadas no Brasil pela mesma Todavia, em tradução de Caetano Galindo. Se neste os horrores da Segunda Guerra e da tentativa de nação contaminavam uma família, em Johnson é como se um exército zumbi tivesse sido atingido pela consolidação desse projeto de país, já sem chance para o idílio.

A linguagem é quase sempre direta feito um jato de heroína penetrando as veias, mas em alguns momentos Johnson se permite brincar com o ritmo, o que produz cristais brilhantes como o trecho de “Sob fiança” em que o narrador deixa ver a pessoa escondida por trás dos horrores da vida: “sempre pensando que ia encontrar um jeito honesto de ganhar algum dinheiro, sempre acreditando que eu era uma pessoa honesta que não deveria estar fazendo esse tipo de coisa, sempre deixando pra depois porque tinha medo de que dessa vez me pegassem”.

Voyeurismo

Em outros momentos, daqueles que revelam os melhores contistas — a habilidade de capturar o miúdo sem deixar o ritmo cair —, o gênio de Johnson fica mais afiado, como em “O vento passava sibilando pelo brinco que eu tinha na orelha”.

Filho de Jesus, livro de Denis Johnson — Foto: Reprodução
Filho de Jesus, livro de Denis Johnson — Foto: Reprodução

O melhor fica para o final. “Beverly Home” encerra “Filho de Jesus” narrando a insólita história do funcionário de uma casa de repouso que passa a espiar um casal de menonitas. Entre namoradas e muitas mortes, ao se dar conta de que existe um lugar para pessoas como ele, a tensão cresce de forma vertiginosa até ser resolvida com uma mistura esquisita, avassaladora, de ternura e desconforto. É um daqueles raros momentos em que a ficção equilibra todas as camadas de voyeurismo, e as sensações que percorrem os personagens são sentidas ao mesmo tempo, numa explosão sinestésica.

Ao desfilar as agruras da tragédia americana, Denis Johnson realizou não uma busca pelo romance que daria conta das complexidades da classe média, mas, antes, o somatório do estrago geral provocado por um país que sacrificou os seus em prol de uma soberania sem benefícios diretos à maioria da população. Homens de olhos furados, enfermeiros que não salvam ninguém, jovens buscando a próxima picada e encontrando algo pior: ler “Filho de Jesus” é como olhar o passado num espelho sujo.

Mesmo que seja difícil aceitar a realidade, os contornos ainda são reconhecíveis. Eles pulsam ao longo de 112 páginas e ajudam a iluminar “a grande lástima que era a vida de uma pessoa neste mundo”.

Mateus Baldi é jornalista e escritor, autor de “Formigas no paraíso” (Faria e Silva, 2022)

‘Filho de Jesus’
Autor:
Denis Johnson. Tradução: Ana Guadalupe. Editora: Todavia. Páginas: 112. Preço: R$ 59,90. Cotação: muito bom.

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