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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

“Amar é um dever, além de um gosto,/ Uma necessidade, não um crime”, diz o poema que mandou para a prisão o poeta português José Maria Barbosa du Bocage em agosto de 1797, acusado de atentar contra o Estado e a religião. À época, o intendente-geral da polícia de Lisboa, Pina Manique, tentava botar ordem na cidade, e Bocage era conhecido por vadiar pelas tavernas e recitar versinhos indecentes. Em “Epístola a Marília”, o poema que atiçou a polícia, o eu lírico procura convencer sua amada a se entregar a ele, mesmo que o casamento não seja possível: “Ah, não te prives, insana, a quem te adora!”

“Epístola a Marília” não é só mais um dos incontáveis poemas libidinosos de Bocage. Nas palavras de José Paulo Netto, organizador de “Da erótica: muito além do obsceno”, recém-lançada antologia da poesia picante do português, os versos sintetizam um “programa político” influenciado pelos ideais iluministas. Professor emérito da UFRJ e autor de “Karl Marx: uma biografia”, Netto apresenta um Bocage progressista. Ou, como o descreveu, nos anos 1960, o crítico literário José Guilherme Merquior, um “rebelde sem revolução”.

Rebelde e safado. No soneto “Epitáfio”, ele explicitou como gostaria de ser lembrado: “Aqui dorme Bocage, o putanheiro./ Passou a vida folgada e milagrosa;/ Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro”. “Da erótica” traz um apanhado dos poemas pornográficos que fizeram a fama de Bocage, como “Ribeirada”, que narra as “ações famosas do fodaz Ribeiro”, e “A Manteigui”, dedicado à “puta rafada” (experiente) que “suspira de saudade, e de luxúria” por um negro às vistas do “cornaz marido”.

Séculos de censura

Nascido em Setúbal, não muito longe de Lisboa, em 1765, Bocage serviu à Marinha lusa em Goa, na Índia, e passou pelo Rio de Janeiro. Desertou em 1790 e voltou a Lisboa, onde permaneceu até sua morte, em 1805, com 40 anos recém-completos. Bocage é o maior nome do arcadismo ou neoclassicismo português, escola literária surgida no século XVIII que pregava um retorno à racionalidade da cultura greco-romana contra os excessos do barroco (no Brasil, seus principais representantes foram os inconfidentes mineiros Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga). Chegou a filiar-se à Nova Arcádia, academia de poetas lisboetas, mas foi expulso por satirizar seus pares.

Em vida, publicou três volumes de “Rimas”. Sua obra erótica, porém, só foi reunida em 1854, pelo maçom Inocêncio Francisco da Silva, mas não escapou da censura. Só foi completamente liberada em 1974, depois da Revolução dos Cravos. O escritor Alexandre Herculano (1810-1877) disse que com Bocage a poesia “desceu do salão à praça” e o chamou de “nosso primeiro poeta popular”.

José Paulo Netto afirma que o português não era o “boêmio ocioso” que pintam por aí (desde o século XVIII), mas um “profícuo trabalhador intelectual”. Bocage, diz ele, era um libertino não só no sentido dos dicionários (aquele que leva uma vida dissoluta, que se entrega imoderadamente aos prazeres do sexo), mas no iluminista, pois pensava livremente e encarava os preconceitos de seu tempo.

— Há em Bocage uma confluência entre libertinagem e libertarismo. Ao contrário de Camões, ele tinha um forte sentimento antiaristocrático. Bocage tinha cheiro de povo! Ele não frequentava apenas tavernas de intelectuais, mas também aquelas preferidas por artesãos que cantavam a “Marselhesa” (hino revolucionário francês) — explica. — Como todos os intelectuais que vieram entre a Revolução Industrial, no século XVIII, e a derrota de Napoleão, em 1815, Bocage produziu sua obra influenciado pela Revolução Francesa.

Assim como os jacobinos, Bocage era anticlericalista. A “Epístola a Marília” não poupa críticas à religião (“peste implacável do fanatismo”) e se insurge contra o inferno, “detestável crença” propagada pelos padres a fim de “oprimir seus iguais com férreo jugo” e ameaçar quem se entrega a “delícias inocentes”.

Organizador da obra completa do poeta, o português Daniel Pires escreveu que a forma como Bocage “equacionou a sociedade na sua poesia constitui um paradigma para os revolucionários liberais de 1820” — que forçaram Dom João VI a voltar do Rio para Lisboa e se submeter a uma Constituição. André da Ponte de Quental, avô do poeta Antero de Quental e um dos líderes da rebelião liberal, foi amigo de Bocage e viveu na mesma casa que ele.

Antiburguês e feminista

Professor da Universidade de Lisboa e autor do prefácio de “Da erótica”, Francisco Louçã lembra que a “ânsia de saber” do iluminismo reforçava o anticlericalismo, uma vez que tanto a Igreja Católica como as protestantes eram “puritanas e punitivistas” quanto à sexualidade e aliadas do Absolutismo, o que levou Bocage e diversos autores de seu tempo a afirmarem uma cultura racionalista. “O que a razão desnega não existe”, escreveu Bocage.

— A boemia e a libertinagem eram parte integrante de sua rebeldia poética e civilizacional. Seu erotismo era uma declaração política e uma forma de vida — afirma Louçã.

Bocage também escreveu o poema que é considerado o primeiro manifesto feminista português: “Epístolas de Olinda e Alzira”. O poema consiste num vaivém de cartas em que duas amigas narram uma à outra suas experiências na alcova. Elas lamentam a “triste educação” das mulheres, que alcança “extinguir o voraz fogo/ Que sopra a Natureza”. No entanto, revelam-se atrevidas na cama (“Sobre ele me arrijei, toda ansiosa”), buscam avidamente o “prazer celeste” e exigem que seus parceiros conheçam a anatomia feminina: “Um dedo seu, que um raio parecia,/ Tocou o sítio onde os deleites moram”.

Eliane Robert Moraes, professora da USP, explica que “Epístolas de Olinda e Alzira” atualiza uma convenção erótica surgida no Renascimento, o “diálogo entre mulheres”. Ela destaca que, na história da literatura erótica ocidental, Bocage pode ser equiparado ao Marquês de Sade.

— Tanto Sade como Bocage abordam o que há de mais alto e de mais baixo no sexo, tangenciam o nojo e os nossos tabus mais radicais. Falam do sujo e do escatológico com uma liberdade e um acabamento e estético e filosófico imbatíveis — diz a organizadora do recém-lançado “O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1852-1922)” (Cepe).

Tesão com revolução

Eliane diz ainda que não é de se estranhar que Bocage interesse tanto a um marxista como José Paulo Netto, pois o português, a seu modo, também é um materialista: não lhe interessa o amor idealizado da burguesia, mas as relações entre corpos reais.

Mas nem todo comunista sabe apreciar o materialismo bocagiano. No estudo clássico “História da literatura portuguesa”, os marxistas lusos António José Saraiva e Óscar Lopes nem sequer tocam na obra erótica do autor. Netto até suspeita ser o “primeiro comunista de carteirinha” a reivindicar não só a libertinagem, mas também o libertarismo de Bocage.

— O sensualismo de Bocage expressa uma revolta contra o profundo conservadorismo do Portugal pré-revolução liberal. Bocage é uma pepita da literatura portuguesa, um libertino emancipatório. O Bocage machista existe sim, mas é menor. Em sua poesia, a mulher tem voz, não é só objeto. O que é uma conquista lírica um bocado importante — afirma.

Netto se aproximou mais da cultura portuguesa quando viveu no país, exilado pela ditadura militar. Mas já lia Bocage desde sua adolescência às margens do Rio Paraibuna, em Juiz de Fora (MG). Ele até se recorda de uma piada bocagiana que aprendeu ainda menino:

— Bocage vê uma moça bonita num jantar e, para constrangê-la, pergunta: “O que a mulher tem no meio das pernas”? E depois responde: “Os joelhos.”

Entre versos

“Verás como, envolvendo-se as vontades/ Gostos iguais se dão e se recebem./ Do júbilo há de a força amortecer-te. Do júbilo há de a força aviventar-te./ Sentirás suspirar, morrer o amante,/ Com os seus confundir os teus suspiros,/ Hás de morrer reviver com ele” (de “Epístola a Marília”)

“Fez-me Belino levantar, e tendo/ Ele, sentado, unido os joelhos,/ Sobre eles me sentou, e franco acesso/ Da lança abrindo à ponta, a foi de manso/ No riste pondo, ‘té que a meio conto/ Nele embebida, sobre si de todo/ Levando o peso meu, entrou de modo/ Que fiquei ‘té as vísceras varada” (de “Epístolas de Olinda e Alzira”)

“Ergue-lhe a saia o renegado amante,/ Estira-se a consorte ágil e pronta,/ E ele a seta carnal no mesmo instante/ Ao parrameiro mísero lhe aponta:/ C’um só beijo do membro palpitante/ Ficou subitamente a moça tonta/ E julgou (tanto em fogo ardia o nabo!)/ Que encerrava entre as pernas o diabo” (de “Ribeirada”)

“Mete mais, mete mais... Ah Dom Fulano!/ Se o tivesses assim, de graça o tinhas!/ Não viveras em um perpétuo engano,/ Pois vir-me-ia também quando te vinhas./ Mete mais, meu negrinho, anda magano;/ Chupa-me a língua, mexe nas maminhas... Morro de amor, desfaço-me em langonha.../ Anda, não tenhas susto, nem vergonha” (de “A Mantegui”)

Capa de "Da erótica", antologia poética de Bocage organizada por José Paulo Netto — Foto: Divulgação
Capa de "Da erótica", antologia poética de Bocage organizada por José Paulo Netto — Foto: Divulgação

Serviço:

‘Da erótica’. Autor: José Maria Barbosa du Bocage. Organizador: José Paulo Netto. Editora: Boitempo. Páginas: 272. Preço: R$ 75.

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