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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

“Hwæt!”, gritava J.R.R Tolkien, autor de “O senhor dos anéis”, para começar suas aulas de inglês antigo na Universidade de Oxford. O brado, que significa “escutem!” e servia para chamar a atenção dos alunos, era uma citação de “Beowulf”, poema medieval anglo-saxão povoado por guerreiros, dragões e paisagens pantanosas. “Escutem! Ouvimos falar da glória dos guerreiros daneses dos dias de outrora, dos reis de sua tribo, de como aqueles príncipes realizaram feitos de coragem!”, dizem as primeiras linhas da tradução em prosa assinada por Elton Medeiros, recém-publicada pela Editora 34 e premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Ambientado na Escandinávia mítica dos séculos V e VI, “Beowulf” tem um exército de fãs ardorosos (que inclui até Jorge Luis Borges) e inspirou de produções hollywoodianas à literatura de cordel. O poema de 3.182 versos conta “feitos de coragem” do príncipe Beowulf, que tem a força de 30 homens e se oferece para livrar os daneses das garras de Grendel, criatura monstruosa que, toda noite, há 12 invernos, invade os salões do rei Hrothgar para devorar seus soldados. Desarmado, Beowulf enfrenta a fera e arranca-lhe o braço, levando- à morte. Cinco décadas depois, novo desafio: enfrentar um dragão que assola seu reino. Beowulf consegue matá-lo, mas morre envenenado por uma mordida do monstro. Em seu funeral, é saudado como “o mais amável dos homens e o mais gentil, o mais bondoso para o povo e o mais ávido por fama”.

Traduzir sem trair

O único manuscrito existente de “Beowulf” foi confeccionado por volta do ano 1000. Já a primeira edição moderna foi publicada em 1815 por um erudito dinamarquês, Grímur Jónsson Thorkelin, que traduziu o poema para o latim. Ele, porém, conhecia pouco o inglês antigo e confundiu o enredo: em sua versão, Beowulf enfrenta Grendel três vezes e só o mata na terceira. As traduções seguintes, tanto inglesas quanto dinamarquesas, também eram problemáticas. Em 1833, o inglês John Mitchell Kemble inaugurou uma boa leva de traduções. J.R.R. Tolkien verteu “Beowulf” para o inglês moderno entre 1920 e 1926, mas o trabalho foi publicado apenas em 2014.

Primeira página do manuscrito da lenda de “Beowulf”: escrito em inglês antigo, foi criado por volta do ano 1000 — Foto: Reprodução
Primeira página do manuscrito da lenda de “Beowulf”: escrito em inglês antigo, foi criado por volta do ano 1000 — Foto: Reprodução

Existem três traduções diretas para o português, todas de brasileiros. A de Ary Gonzálvez Galvão, publicada em 1992, tenta recriar as aliterações do original e opta por versos livres. A de Erick Ramalho, de 2007, preferiu versos decassílabos. Já Elton Medeiros, autor da edição mais recente, seguiu o conselho de Tolkien: traduzir o poema em prosa para facilitar a compreensão do leitor.

Medeiros descobriu “Beowulf” enquanto cursava História na USP. O poema era o que faltava para completar o “pacote nerd”: ele jogava RPG, gostava de “O senhor dos anéis” e se interessava pela Inglaterra Medieval. Aprendeu inglês antigo por conta própria e começou a traduziu “Beowulf” no mestrado.

Traduzir “Beowulf” é matar um dragão por dia. Algumas palavras do inglês antigo não têm correspondente nas línguas modernas, como pegn, que Medeiros descreve como uma espécie de samurai anglo-saxão, um nobre a serviço do rei, que ele traduziu por “guerreiro”.

Mas não é só isso. A poesia anglo-saxã é caracterizada por aliterações: o uso de três palavras com sonoridade semelhante no mesmo verso, como Grendel, gongan (caminhar) e godes (Deus). Quando a aliteração não era possível, substituía-se a palavra por um kenning, uma expressão que tivesse a sonoridade desejada, como “caminho da baleia” (mar) ou “tempestade de espadas” (batalha). O próprio nome Beowulf é um kenning, junção de beo (abelha) com wulf (lobo). Beowulf é o “lobo das abelhas”, ou seja, um urso.

Paganismo para cristãos

Por muito tempo, estudiosos debateram se “Beowulf” era uma obra cristã ou pagã. O poema retoma tradições pagãs norte-europeias, mas tem várias menções à Bíblia — Grendel é chamado de “descendente de Caim”. Não faltou quem argumentasse que “Beowulf” é uma legítima obra pagã e que as referências foram acréscimos posteriores. Alguns tradutores chegaram a extirpar o cristianismo do texto.

Medeiros explica que, na verdade, “Beowulf” busca adequar tradições pagãs à teologia cristã. A obra, diz ele, é uma tentativa de construir uma identidade anglo-saxã que incluísse também a cultura dos escandinavos que invadiram as ilhas britânicas na Idade Média. Por isso, não é de se estranhar que a narrativa mais célebre escrita em inglês antigo se passe no continente e seja protagonizada por povos que habitam os territórios das atuais Dinamarca e Suécia.

— Até o reinado de Alfred, no século X, a Inglaterra ainda não existia. A partir daí, tanto os anglo-saxões como os descendentes dos escandinavos, já como parte da aristocracia, passam a constituir um único povo. “Beowulf” traz à tona o passado escandinavo para formar a identidade nacional — diz Medeiros, que acrescenta que o poema também difundiu valores éticos para a aristocracia. — “Beowulf” busca espelhar um modelo de sociedade ao reforçar vínculos sociais, relações de poder e valorizar a lealdade acima de tudo

No entanto, a ética de “Beowulf” não é exclusiva dos anglo-saxões. Jorge Luis Borges comparou os guerreiros do poema aos “compadritos”, os valentões das periferias de Buenos Aires. Em seu “Curso de literatura inglesa”, disse que tanto os compadritos como Beowulf gostavam de exibir seus feitos. “Na tempestade da batalha, destruí as poderosas feras do oceano com o auxílio de minha mão”, gaba-se o herói.

O impacto cultural da obra é comparável à força do próprio Beowulf. Inspirou Tolkien a criar Smaug, o dragão de “O hobbit”, e Neil Gaiman a escrever os contos “Bay Wolf” e “O monarca do vale”. O britânico também assinou o roteiro do filme “Beowulf”, de 2007, que não agradou a quase ninguém.

No livro “Devoradores de mortos” (que originou o filme “O 13º guerreiro”), Michael Crichton, autor de “Jurassic Park” (o livro) uniu a narrativa anglo-saxã a relatos de um viajante árabe que conheceu os vikings. “Beowulf” ainda foi filmado por por Graham Baker (que o ambientou num futuro pós-apocalíptico), Sturla Gunnarsson (que se manteve fiel ao poema) e Robert Zemeckis (que abusou dos efeitos especiais). Também virou RPG (“Beowulf: age of heroes) e e foi adaptado para os quadrinhos pelos espanhóis Santiago García e David Rubín.

Cordel encantado

No Brasil, o mito rendeu “A saga de Beowulf”, um cordel escrito por Marco Haurélio e ilustrado por Luciano Tasso, que em breve ganhará uma nova edição pela Folia de Letras. Em versos rimados, Grendel vira “um assassino cruel/ cuja malvadez não pode/ ser descrita no papel”, e Beowulf diz: “Bom tio, deixa que acabe/ Com o monstro e sua raça.”

Ilustração de Luciano Tasso para "A saga de Beowulf", cordel de Marco Aurélio — Foto: Reprodução
Ilustração de Luciano Tasso para "A saga de Beowulf", cordel de Marco Aurélio — Foto: Reprodução

— É um mito trágico, pois ao enfrentar o dragão ele se sacrifica por seu povo. Morre porque é um rei já no inverno de sua vida. Morre para que outros Beowulfs possam surgir e brilhar — filosofa Haurélio, que também é autor de outro cordel inspirado em Beowulf: “O cavaleiro de prata”.

Já Medeiros, o tradutor, afirma que “Beowulf” chama atenção do leitor pelo que tem de fantástico, mas o conquista pelo que tem de humano.

— A luta de Beowulf contra Grendel e o dragão é a luta de Hércules para cumprir seus trabalhos, de Enéias em Troia. É um desafio fantástico, mas permite ao leitor se identificar. É por isso que o poema continua tão relevante quanto as peças de Shakespeare — diz ele.

Serviço:

"Beowulf e outros poemas anglo-saxônicos (séculos VIII-X)"

Autor: Anônimo. Tradução: Elton Medeiros. Editora: 34. Páginas: 368. Preço: R$ 86.

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