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Por Antonio Marcos Pereira; Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro

A experiência central que a historiadora e professora Denise San’Anna busca retratar em “A cabeça do pai” é simultaneamente comum e extraordinária. A narradora, Paula, é uma pessoa de classe média, casada, mãe de dois filhos, e que tem um trabalho que não chegamos a saber exatamente qual é. Seus pais idosos vivem sós há anos, e a mãe vem apresentando sintomas de decrepitude cognitiva. O pai, ativo, saudável, desempenha a função de cuidador da esposa, e a filha dá um certo apoio. É isso: como qualquer um de nós, ela está correndo atrás da própria vida e das próprias coisas. Um dia, dando uma passadinha, encontra a mãe desnorteada e o pai inconsciente, caído no sofá, vítima de um AVC. E agora?

O livro relata esse “E agora?”, na primeira pessoa. Acompanhamos Paula do Samu e da UTI aos cuidados paliativos, às despedidas, ao manejo dos pertences do pai. Em seus movimentos de entrada e saída de hospitais, em seu trato com o universo da assistência à saúde, ela lida com sua própria identidade, ferida, fraturada e periclitante, cuidando dos pais, atestando suas próprias sequelas e se remendando como pode. Paula é filha, mas talvez se torne órfã em breve; é mãe, mas tem sido acossada pelas dificuldades com o pai e como elas afetam sua relação com os filhos; é esposa, mas o casamento, como tudo o mais em sua vida, tem sofrido.

Onde encontrar empatia, consolação, abrigo? Quando o cuidado dos corpos termina e quando começa o cuidado de outra coisa — coração, afetos, mente? Colados à maneira como ela percebe e vivencia as coisas, abrimos, junto com ela, a caixa da memória, recuperando incidentes infantis, lembranças da vida com o pai, histórias da vizinhança.

Ciclo natural da vida

Alguma experiência de cuidar dos pais em seu momento de enfermidade e necessidade maior há de ser, efetivamente, comum: é bem provável que, se não passamos por isso ainda, em algum momento passaremos. Estamos, todos, sujeitos a vivenciar algo dessa ordem. É como se fosse parte do ciclo natural da existência: os pais cuidaram de nós quando éramos crianças e, em sua velhice, nós cuidamos deles, até que um dia eles se vão, e assim segue a vida, geração a geração.

Entretanto, e apesar de sua possibilidade plausível de generalização, essa experiência ocorre em particular, na vida de cada um, constituindo uma excepcionalidade, um momento único. Nos defrontamos com a finitude de nossos entes queridos: pessoas que nos formaram, marcaram, eventualmente (talvez inevitavelmente) feriram. Toda uma vida aparece nesses momentos de crise, emoções emergem, histórias definidoras dos termos da relação irrompem. E, no manuseio dessa dimensão particular da experiência, esse livro, que já era bom, passa a ser extraordinário.

“Depois de sete meses de internação, aprendi que para ficar junto dos pais era preciso carinho e paciência. Eu estava completamente esgotada. Precisei inventar estratégias para não sucumbir ao desalento. Continuava a contar-lhes casos, reais e fictícios.”

Do parafuso que o pai aperta nas mãos no momento em que lhe acomete o AVC ao diário secreto que a filha encontra ao remexer seus pertences, esse livro se metamorfoseia, diante de nossos olhos, em uma cornucópia de histórias. Há o diário parco de um avô, há uma professora de piano marcial e sofrida, há as meninas da vizinhança e sua descoberta, arrevesada e trôpega, da sexualidade, há um primo vida torta que gosta de Janis Joplin, há o legado perverso e mascarado do passado escravista desse país, com seus entreditos, esperanças e sofrimentos infindos.

Não era sobre a doença e padecimentos de um pai? Era, é. Mas é também outra coisa, que num trecho se explicita como uma passagem entre o pai e o país. Não se engane: o livro não deixa de lado o risco de uma aventura pela verdade da ficção, preferindo um pacto com a pertinência do conteúdo relevante politicamente.

A destreza é impressionante, assim como é a clareza com que Denise é capaz de narrar momentos abissais, a precisão com a qual ela lida com as emoções mais avessas, entrando e saindo das histórias do pai, das suas próprias, das nossas. E lemos todas com os olhos bem abertos, ávidos, tocados por esse livro intenso e complexo — como a vida à qual ele se reporta.

Antonio Marcos Pereira é professor da Universidade Federal da Bahia

A cabeça do pai’. Autora: Denise Sant’Anna. Editora: Todavia. Páginas: 128. Preço: R$ 54,90. Cotação: muito bom.

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