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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

No início de 2015, o escritor francês Emmanuel Carrère desconfiava já não ser mais “pateticamente neurótico”. Nunca estivera tão tranquilo, tão feliz. Tanto que até planejava escrever “um livrinho simpático e perspicaz” sobre ioga, que pratica há décadas. Mas ainda nos primeiros dias do ano tudo desabou. Carrère estava num retiro de meditação quando soube que seu amigo Bernard Marris, economista que colaborava com o Charlie Hebdo, havia sido assassinado no ataque terrorista ao jornal satírico. Ao luto, seguiu-se uma severa crise depressiva, que o levou a se internar em um hospital psiquiátrico, onde foi tratado com eletrochoques.

Falou sobre tudo isso em “Ioga”, recém-lançado no Brasil: meditação, luto, melancolia e também sobre uma temporada passada numa ilha grega dando aulas de escrita a refugiados. Até aí, nada de novo. Em seus romances sem ficção, Carrère fala de si e dos outros sem censura: sua crise de fé (“O reino”), o passado obscuro da família (“Um romance russo”), o câncer da cunhada (“Outras vidas que não a minha”). Mas há algo que ele não conta em “Ioga”. Sua ex-mulher, Hélène Devynck, foi à Justiça e conseguiu proibi-lo de escrever sobre ela e a filha deles. Carrère teve que apagá-las do livro.

A seguir, o autor explica como o desentendimento com a ex impactou seu projeto literário. Fala também sobre o último livro, “V13”, inédito no Brasil, que acompanha o julgamento dos terroristas que atacaram a casa de shows parisiense Bataclan — mas desvia quando o assunto é política.

Em “Ioga”, você se descobre incapaz de escrever sobre sua depressão: “Não existem palavras para isso”. Como um escritor cujo projeto literário é autobiográfico lida com essa limitação?

(Silêncio.) “Ioga” é um livro que lida com coisas sobre as quais não fui e ainda não sou capaz de escrever, embora tenha tentado. Você só consegue escrever sobre a depressão quando está melhor e já não se lembra exatamente do quão desesperadora era a melancolia. No livro, tento me lembrar de quem eu era quando estava internado. Não dá para me lembrar de tudo, mas dá para recuperar algo do que eu sentia, tanto no desespero absoluto da depressão como na experiência de meditar.

Você afirma: “Não posso dizer deste livro o que com orgulho disse de outros: ‘Tudo aqui é verdade’”. Como ser proibido de escrever sobre sua ex-mulher impactou a obra?

Foi simplesmente desconfortável. Durante dois anos, escrevi sobre minha vida, o que incluía minha ex-mulher. Não havia escrito nada de desagradável sobre ela, não contei nenhum segredo, nada. Fui muito delicado e pudico. Mas tive que apagá-la do livro. Foi triste. Até tentei fazer ficção, mas não deu certo. A ausência dela na história é um defeito do livro.

Você se compara a um general que testava métodos de tortura em si mesmo antes de aplicá-los nos outros e concluiu que eram absolutamente suportáveis. Você se sente assim ao escrever sobre si mesmo e sobre os outros?

Ao contar o que considero verdade, tenho que contar também o que considero ser a verdade sobre as outras pessoas, e isso pode machucá-las terrivelmente. É um risco que todo escritor autobiográfico corre. Isso aconteceu em “Um romance russo”, quando contei um segredo que minha mãe não gostaria que eu revelasse. Não foi nenhuma tragédia, mas ainda me arrependo (Carrère contou que seu avô colaborou com os nazistas e provavelmente foi executado pela Resistência Francesa. A mãe parou de falar com o escritor por um tempo). Desde então, prometi não fazer isso de novo. Errei uma vez e tenho feito o meu melhor para não errar de novo.

Você se diz obcecado por ser “um grande escritor”. Mas também afirma que daria tudo para ser um “homem bom”. Tem certeza? Ser um “homem bom” talvez lhe impedisse de revelar tanto sobre si mesmo e os outros nos livros que fizeram de você um “grande escritor...”

(Silêncio.) É complicado (risos). Honestamente, acho que tenho mais talento para ser um bom escritor do que um homem bom. Faço meu melhor para não ser um homem muito ruim (risos).

No começo de “Ioga” você parece feliz como nunca esteve na vida, graças ao amor e à meditação. Como você está hoje?

(Silêncio.) Nada mal. Tenho uma companheira que eu amo, meus filhos estão bem, ainda escrevo livros. Descobri como a vida é precária e não sou mais tão confiante como era, mas talvez seja melhor assim.

Você ainda medita?

Sim, mas de um jeito mais informal. Quando acordo, passo meia hora em silêncio, sem acender a luz, com uma xícara de chá.

Livros como “V13”, sobre o julgamento dos ataques terroristas de novembro de 2015, costumam focar na psicologia dos criminosos, mas você preferiu dar destaque às vítimas. Por quê?

Escrevi bastante sobre os criminosos, até descrevo o funcionamento de uma célula terrorista. Normalmente, temos pena das vítimas e fascínio pelos réus. Mas nesse julgamento eles não eram tão interessantes. Eram uns pobres coitados. As vítimas e suas famílias eram mais interessantes. Por causa delas, cobrir o julgamento foi uma experiência tão comovente e valiosa.

Como foi estar no tribunal?

Muito peculiar.Foi um julgamento longo e ambicioso. Durou quase um ano. Tínhamos que saber tudo: o que aconteceu naquelas poucas horas de horror, quem eram os assassinos, suas famílias, seus amigos, as vítimas, a história do Islã, a história do terrorismo… Tudo era impressionante, mesmo quando era tedioso ou difícil emocionalmente. Era como estar exposto à radiação. Aquilo mudou minha vida. Nós, que frequentávamos o tribunal formamos uma comunidade: jornalistas, advogados, familiares das vítimas. Era terrivelmente triste. Mas não era só triste. Também era alegre, por causa das amizades que fizemos.

Nos seus dois últimos livros, você fala de refugiados e do terrorismo. Pretende escrever mais sobre política ?

Não. Não sou bom em dar opiniões. Prefiro contar histórias. Também sou jornalista e há dois tipos de jornalistas: analistas e os repórteres. Eu sou um repórter. Não confio nas minhas próprias opiniões.

Por quê?

Sou facilmente convencido de algo. Isso mostra que eu não tenho preconceitos, mas também que eu não tenho convicções próprias. É um defeito. Vou dar um exemplo. Em “Ioga”, conto que dei aula de escrita criativa para refugiados sírios na ilha de Leros, na Grécia. E no julgamento de “V13” foi discutida a história de um dos terroristas que veio da Síria para a Europa passando por Leros exatamente na época em que eu estava lá! Era um rapaz como os que conheci, em quem acreditei e cujas histórias contei. Eu poderia tê-lo encontrado, feito amizade com ele, sem saber quanta gente ele mataria em Paris pouco tempo depois. A conclusão dessa história não é que não devemos ter empatia ou confiar nos outros. Mas ela me serve de alerta.

Capa de "Ioga", romance do escritor francês Emmanuel Carrère — Foto: Reprodução
Capa de "Ioga", romance do escritor francês Emmanuel Carrère — Foto: Reprodução

Serviço:

"Ioga"

Autor: Emmanuel Carrère. Tradução: Mariana Delfini. Editora: Alfaguara. Páginas: 272. Preço: R$ 79,90.

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