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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Em 2012, o ator Jean-Claude Van Damme, conhecido por exibir os músculos em filmes de artes marciais, visitou Kaharlyk, cidadezinha ucraniana nos arredores de Kiev, a convite do político local Oleksandr Onyshchenko. Filiado ao mesmo partido pró-Rússia do então presidente ucraniano, Onyshchenko apostava na presença do astro para impulsionar sua campanha. Deu certo. Ele foi eleito e depois reeleito para o Parlamento. Em 2021, teve seus investimentos nos EUA bloqueados, acusado de espalhar desinformação sobre as eleições americanas do ano anterior.

Quando soube da passagem de Van Damme por Kaharlyk, o jornalista Oleh Shynkarenko teve a ideia de ambientar uma distopia na cidade, tomando-a como microcosmo do país. Começou a escrever o romance no Facebook. Todo dia publicava um trecho de cem palavras, mas sem economizar na acidez. Como é comum na ficção científica, seu livro “Kaharlyk” começou a se parecer cada vez mais com a realidade.

Já publicado na Ucrânia e no Reino Unido (a edição húngara deve sair em breve), o romance se passa no início do século XXII e acompanha a jornada de Olexandr Sahaidachny à procura da mulher, Olena. Ele começa a busca por Kaharlyk. A cidadezinha está completamente devastada, parece ter voltado à Idade Média. Não sobrou quase ninguém lá e até a passagem do tempo se alterou. Revirando jornais antigos, ele lê sobre a invasão russa, iniciada quase um século antes. Embora se lembre da mulher, quase todas as suas memórias desapareceram porque seu cérebro se tornou uma arma de guerra, usado pelo exército russo para controlar satélites. Antes mesmo das manifestações pró-Ocidente que derrubaram o governo ucraniano em 2014, Shynkarenko já previa um ataque de Moscou. Se a Geórgia havia sido invadida em 2008 por se aproximar da Europa, o que impediria os russos de avançar sobre a Ucrânia? O raciocínio dele se mostrou correto: há um ano os russos chegaram, e o país afundou na distopia.

— Em 24 de fevereiro de 2022, acordei com o barulho de explosões e helicópteros. Dava para ver fumaça não muito longe da minha casa, em Irpin (região de Kiev). Acordei minha mulher e meu filho e começamos a fazer as malas. Partimos para o Oeste da Ucrânia e nunca voltamos ao nosso apartamento, comprado um ano antes — contou Shynkarenko ao GLOBO em chamada de vídeo de Netishyn, onde vive hoje. — Em março, minha mulher e meu filho foram para Budapeste, na Hungria. Não os vejo desde então, porque homens entre 18 e 60 anos não podem deixar a Ucrânia.

‘Os caça-fantasmas’

Shynkarenko tem 47 anos e feições eslavas: pele clara, olhos azuis, nariz largo e um corte de cabelo raspado dos lados, parecido com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Seu filho tem 10 anos e gostava de jogos de tabuleiros. No início da guerra, Shynkarenko montava um tabuleiro de Banco Imobiliário na Ucrânia, ligava para o filho e eles jogavam à distância. Agora, o menino prefere ler, mexer no celular e brinquedos de montar. Recentemente, Shynkarenko enviou para o filho réplicas de dois carros cinematográficos que podem ser desmontadas e remontadas à vontade: o Ecto-1, de “Os caça-fantasmas”, filme preferido do menino, e o DeLorean, que viaja no tempo em “De volta para o futuro”.

Nascido em Zaporíjia, onde está a maior usina nuclear da Europa, ocupada pelo exército russo, Shynkarenko sempre quis ser escritor. Cresceu lendo ficção científica e, na adolescência, descobriu Kafka, Joyce e autores russos contemporâneos. Virou repórter. Em 2013 e 2014, quando os ucranianos foram às ruas após o governo suspender negociações da entrada do país na União Europeia e se aproximar de Moscou, cobriu os protestos para o site americano The Daily Beast.

Largou o jornalismo porque o que ganhava era insuficiente para sustentar a família e começou a trabalhar com tecnologia da informação. Mas não tem sido fácil. Do fim do ano passado, quando mísseis russos atingiram uma distribuidora de energia nas proximidades de Netishyn, até o começo deste mês, ele passava entre 12 e 16 horas por dia sem eletricidade. A destruição da infraestrutura energética ucraniana tem sido uma prioridade russa.

— Escrevi “Kaharlyc” para responder uma pergunta: o que sobraria da Ucrânia após uma invasão russa? Muito pouco, me parece — diz o autor, que lamenta que os ucranianos obrigados a permanecer no país estejam sendo convocados pra a guerra. — Previ muitos eventos da guerra dez anos atrás, como os mísseis que destroem mercados e como ficam nossas cidades após os bombardeiros. Mas falhei ao medir o tamanho do ódio da Rússia por nós. Os soldados russos destroem tudo o que veem pela frente, como se extraíssem prazer quase sexual da guerra.

Desde a Revolução Laranja, de 2004, que começou com denúncias de fraude eleitoral em benefício de Viktor Yanukovych, o candidato pró-Moscou, e consolidou a vitória de Viktor Yushchenko, pró-Ocidente, Shynkarenko vem observando a propaganda “necro-imperialista” do presidente russo Vladimir Putin, que parecia preparar o país para invadir territórios historicamente ligados a Moscou.

— Ao longo dos anos, o governo russo promoveu a tese de que a cultura ucraniana não existe, que a Ucrânia é uma invenção e que todos os lugares onde é falada a língua russa são território russo — afirma. — Por essa lógica, se no passado um país foi parte do Império Russo, ele deve retornar à Rússia. Portanto, não só a Ucrânia, mas também a Bulgária, a Polônia, a Estônia, a Lituânia, a Letônia e até a Finlândia pertencem à Rússia. Todo o Leste Europeu deve voltar ao controle russo.

Nessa guerra expansionista, diz Shynkarenko, os russos recorrem a todas as armas disponíveis, inclusive à própria cultura, ameaçada de cancelamento no início da guerra, quando cursos sobre Dostoiévski, apresentações de sinfonias de Tchaikovsky e mostras de cinema foram suspensos. O escritor afirma que russos usam os clássicos de sua literatura como “granadas”e cita o livro “Imperial Knowledge” (conhecimento imperial), da eslavista polaco-americana Eva Thompson, que mostra como as obras de autores como Púchkin, o poeta-símbolo do país, e até do pacifista Tolstói foram usadas para legitimar o “colonialismo”. Ele lembra ainda os versos que Joseph Brodsky, Nobel de Literatura e dissidente soviético, dedicou à Independência da Ucrânia, em 1991. O poema profetiza que, em seu leito de morte, o país se esquecerá de Taras Shevchenko, fundador da literatura ucraniana moderna, para recitar Púchkin.

— Depois de ocuparem Kherson, os russos instalaram um outdoor com uma imagem de Púchkin e frases em que ele descreve a cidade como parte do Império Russo. Ou seja: se Púchkin visitou e escreveu sobre a cidade, ela pertence à Rússia. Já imaginou se Púchkin tivesse visitado o Rio de Janeiro? — diz o autor, que por muito tempo escreveu em russo, idioma até poucos anos onipresente na imprensa ucraniana.

Risco nuclear

Shynkarenko chama de “ingênuo” quem acredita ser possível negociar a paz com os russos (como almeja o governo brasileiro) e defende a atuação de Volodymyr Zelensky, que conseguiu que as potências ocidentais armassem o exército de seu país. Ele descreve a guerra como um “terrível pesadelo ainda longe do fim”.

— Putin estava confiante de que derrotaria a Ucrânia em poucos dias porque pode mobilizar um exército muito maior. E os russos não têm medo do sacrifício. Eles tratam a guerra como um jogo. Seu país é tão vasto porque há séculos eles têm guerreado e anexado territórios vizinhos. Temos visto que o exército russo não é tão forte quando imaginávamos, o que nos dá esperança, mas ainda pode vencer se a Ucrânia continuar lutando sozinha — afirma o escritor, que não acredita que o presidente russo recorrerá a armas nucleares. — Ele tem muito medo de morrer. Quem tem tanto medo do coronavírus, como ele, não arrisca um ataque nuclear.

Antes da guerra, Shynkarenko trabalhava em um novo romance: uma releitura da lenda de Kotyhoroshko, herói ucraniano que combate dragões. Agora, nos últimos meses, vem se dedicando à poesia e publicou alguns poemas em inglês no site Poetry School. Um deles descreve como a morte deixa marcas, às vezes invisíveis, em todos os rostos, mas termina com uma nota de esperança: a vida “nunca cessa”.

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