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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

O escritor Tierno Monénembo sente pelo Brasil “a mesma paixão devoradora e incontrolável que um homem sente por uma mulher”. Apaixonou-se ainda na juventude, quando vivia na Guiné, país da África Ocidental onde ele nasceu, em 1947. Lá, descobriu o samba e “um negro chamado Pelé, que jogava por um país cujo nome era novo aos meus ouvidos e inflamava os estádios”. Nos anos 1970, já morando na França, leu Jorge Amado, Guimarães Rosa e João Ubaldo Ribeiro. Um amigo belga, Conrad Detrez, que traduziu Jorge Amado e entrevistou Marighella, disse ao escritor que ele e o Brasil se pareciam: “Vocês têm o mesmo senso de excesso e de escárnio. Vá em frente”, disse.

E assim foi. Monénembo desembarcou pela primeira vez no Brasil em 1992. Passou seis meses por aqui — quatro deles na Bahia, onde conheceu Pierre Verger, fotógrafo e antropólogo francês que se converteu ao candomblé.

Monénembo foi embora com um romance na cabeça. Dedicado a Verger e à “gente da Bahia”, “Pelourinho” foi publicado na França em 1995, mas só saiu no Brasil no fim do ano passado, quando o escritor voltou ao país para participar do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes (MG), e da programação paralela da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

No livro, um escritor guineense (chamado apenas de Escritore) vai à Bahia em busca de sua ancestralidade. “Tenho família aqui. Eu vim reencontrá-los”, diz ele, referindo-se a seus “primos”, os descendentes de Ndindi-Furacão, o valente rei dos Mahi, que jurou certa vez: “Façam de mim um vil escravo se me mostrarem qualquer coisa que eu não seja capaz de vencer e dominar”.

‘Duplo fictício’

Após derrotar as tribos inimigas, Ndindi-Furacão resolve se meter com um baobá. Ele manda lenhadores derrubarem a gigantesca árvore das estepes africanas e afirma que, quando o baobá começar a vacilar, vai segurá-lo no muque. Fracassa. Mas cumpre sua palavra: oferece-se para ser vendido como escravizado aos “Transparentes” (os brancos) e vai parar na Bahia, onde ainda vive sua prole. O Escritore suspeita que reconhecerá de imediato seus primos: está certo de que eles têm figas tatuadas nos ombros.

Monénembo descreve o Escritore como seu “duplo fictício”.

— Juntos, exploramos a Bahia, subimos e descemos ladeiras, perambulamos pelas lanchonetes, passeamos na praia com moças bonitas, degustamos uma moqueca de peixe e bebemos uma pinga ao som do Olodum. A diferença é que eu me mantive preso à realidade e ele se afundou em sua busca frenética por uma lembrança tragada pelas ondas — diz ele, que pontua frases com palavras em português, recurso usado em “Pelourinho”.

Assim como seu antepassado Ndindi-Furacão, o Escritore também fracassa em sua missão: termina assassinado (não é spoiler, isso se descobre na primeira frase do livro). Quem narra “Pelourinho” são dois baianos: Innocencio, um malandro que ganha a vida explorando turistas, e Leda-pálpebras-de-coruja, uma costureira cega, que desde menina sonha com um príncipe africano.

— Esses narradores representam o lado visível e o lado oculto de Salvador. Innocencio é a Bahia alegre e frívola do cotidiano, onde a desenvoltura é a regra. Leda é a Bahia secreta e profunda, que acredita nas divindades negras e sente saudades da África — explica Monenémbo, que conheceu um “Innocencio”, na Bahia, um guia turístico chamado Jorge, “simpático e honesto”. — Ele não tentou tirar vantagem de mim por ser estrangeiro. Aliás, todos os baianos, fossem eles negros ou brancos, gostavam de mim assim que sabiam que eu era africano.

Innocencio é um malandro decadente. Os gringos (e a esposa) fogem dele. “Desde que você passou por aqui, Escritore, não sei se ainda tenho bons reflexos”, confessa. Tanto que ele hesita em se aproveitar de um clarinetista descuidado e em aceitar dinheiro de um médico que propõe usar sua avozinha doente como cobaia de suas pesquisas (que, segundo o doutor, podem curá-la). Innocencio nem sempre foi tão cauteloso. Foi ele quem cegou Leda.

A busca pela ancestralidade africana em diferentes latitudes guia a literatura de Monénembo. Seus romances passeiam por cenários que vão do Senegal a Cuba, da Costa do Marfim à Bahia. O escritor convida os africanos a procurar suas raízes não apenas em seu próprio continente, mas por todos os territórios onde a diáspora espalhou seus antepassados.

Comer, ouvir, dançar

A jornada do Escritore sugere que a literatura pode ajudar nessa empreitada.

— Eu sou guineense, e os personagens de “Pelourinho” são brasileiros, nossas experiências e histórias não são as mesmas. Mas nossa origem é uma só, temos ancestrais em comum. — diz Monénembo. — A música nos lembra disso. Você sabia que o samba e os ritmos caribenhos influenciaram mais a música africana contemporânea do que o jazz? E a literatura revela as identidades que, ao longo do tempo, foram enxertadas no nosso tronco comum. Um livro como “Black Boy”, de Richard Wright, me ensinou mais sobre o que é ser negro nos EUA do que os discursos de Martin Luther King.

Confiante no poder da literatura, o autor escolhe uma frase do escritor colombiano Santiago Gamboa para se despedir da entrevista: “Vocês africanos e nós, latino-americanos, já temos o essencial em comum: comida, música e dança. A partir daí, todo o resto se torna possível”.

Capa de "Pelourinho", romance do escritor guineense Tierno Monénembo publicado pela Nós — Foto: Reprodução
Capa de "Pelourinho", romance do escritor guineense Tierno Monénembo publicado pela Nós — Foto: Reprodução

Serviço:

‘Pelourinho’

Autor: Tierno Monénembo. Tradução: Mirella do Carmo Botaro. Editora: Nós. Páginas: 192. Preço: R$ 70.

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