Livros
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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Quando era criança e vivia na África do Sul, Deborah Levy não queria saber que seu pai estava preso por se opor ao apartheid. Décadas depois, percebeu que não há melhor tema para um livro do que as coisas que preferimos ignorar. Tanto que nomeou “Coisas que não quero saber” o primeiro dos três volumes de sua “Autobiografia viva”. Lançado pela Autêntica, em 2017, o título volta às livrarias acompanhado dos inéditos “O custo de vida” e “Bens imobiliários”.

No segundo e terceiro volumes da trilogia, Levy fala de seu divórcio, da morte da mãe e, principalmente, da luta para encontrar sua voz literária e se fazer ouvida. Autora de romances como “Nadando de volta para a casa” e “O homem que viu tudo”, Levy falou por chamada de vídeo com o GLOBO e explicou como quer usar seus livros para construir uma “nova subjetividade” que rejeite o “binarismo masculino-feminino”.

Na trilogia, você pergunta: o que fazer com as coisas que não queremos saber? Qual a resposta? Escrever livros sobre isso?

Sim. A literatura lida com o inconsciente de modo prático, político e poético. Nós sempre sabemos o que não queremos saber: que amamos nosso parceiro mais do que ele nos ama, por exemplo. Acho que foi Marcel Proust quem disse que quando a dor se torna escrita ela para de nos machucar. O melhor assunto é sempre o que escondemos. Se você me disser “vou te falar sobre o meu pai e o meu irmão”, vou perguntar: “e a sua mãe?”.

“Coisas que eu não quero saber” foi o primeiro livro em que você abordou a sua infância sob o apartheid. Por quê?

Era muito doloroso. Sempre tive orgulho da luta dos meus pais contra o apartheid, mas pensava que a minha história não importava. Os sul-africanos negros sofreram muito mais. “Coisas que não quero saber” é uma resposta ao ensaio “Por que escrevo”, de George Orwell, e uma das razões que ele dá é “impulso histórico”. Comecei a pensar se é por causa da minha história que eu gosto de trazer para o centro personagens que vivem à margem da cultura na minha ficção.

Como foi revisitar essas memórias?

Tentei contar tudo pelos olhos e com o coração da criança que eu fui. Fiquei chocada ao me lembrar da escola para brancos em que estudei. Da professora que me fez soletrar o meu sobrenome, sendo que ela tinha a lista de chamada em mãos, só para dizer: “Ah, você é judia”. Havia muito preconceito. Eu tinha acabado de ser alfabetizada e lia as placas que diziam coisas como “área de banho reservada para uso exclusivo dos membros da raça branca”. Ainda que eu venha de uma família envolvida na luta por direitos humanos, foi muito chocante me lembrar de tudo isso.

Em “O custo de vida”, você escreve que a feminilidade, tal como lhe foi ensinada, é um “fantasma exausto” e já não é mais “expressiva”. Você quer construir uma nova feminilidade com seus livros?

Talvez uma nova subjetividade, para além do binarismo masculino-feminino. Tenho 64 anos. As mulheres da minha geração, foram ensinadas que feminilidade era estar ao serviço dos outros, nunca pensar em si mesma e ter uma paciência interminável. Para me tornar escritora, precisei aprender a interromper, a falar mais alto, e depois a simplesmente usar minha própria voz. Somos interrompidas o tempo todo e, quando interrompemos, não é por grosseria, mas para encontrar um lugar para nós mesmas. Só não reconhece que a feminilidade é um fantasma quem ainda está interessado em abafar a voz das mulheres.

A casa é uma imagem recorrente na trilogia e está ligada à escrita feminina desde o ensaio “Um teto todo seu”, de Virginia Woolf.

Reivindicar um lugar para escrever, por mais humilde que ele seja, é dizer “a minha vida intelectual tem valor”. Isso pode ser difícil para as mulheres. Continuo o ensaio de Woolf em “Bens imobiliários”. Quis usá-la para pensar no que atribuímos valor, no que preferimos guardar e jogar fora, nas reformas gostaríamos de em nossas casas e em nossas vidas. Concluí que meus “bens imobiliários" são meus livros. Eu os construí, sou a anfitriã e eles são a herança das minhas filhas.

Sua mãe dizia que vocês viviam “no exílio” na Inglaterra. Você se vê como uma exilada?

Cheguei ao Reino Unido aos nove anos. Não conhecia os Beatles. Ouvi “Yellow Submarine” no parquinho. Queria me integrar e embarquei no submarino amarelo. Minha infância na África do Sul foi tão difícil que foi um alívio deixar tudo para trás. A história do exilado que sonha em voltar para casa não é a minha. Era a do meu pai. Ele voltou para a África do Sul depois que Nelson Mandela saiu da prisão, em 1994.

Então você se considera inglesa hoje?

Nem totalmente inglesa nem totalmente sul-africana. Eu era muito bom em escolher frutas. Eu ia ao mercado aqui na Inglaterra, fotografa melões ou mangas e mandava para ele, que respondia: “pegue o terceiro à direita”. E sempre acertava! Em janeiro, fui ajudar a desocupar o apartamento dele na Cidade do Cabo. Foi triste, mas libertador. Fiquei me perguntando: sem minha mãe e meu pai, eu ainda pertenço a esse lugar?

Serviço:

"Coisas que não quero saber"

Autora: Deborah Levy. Tradução: Celina Portocarrero e Rogério Bettoni. Editora: Autêntica Contemporânea. Páginas: 104. Preço: R$ 54,90.

"O custo de vida"

Autora: Deborah Levy. Tradução: Adriana Lisboa. Editora: Autêntica Contemporânea. Páginas: 120. Preço: R$ 54,90.

"Bens imobiliários"

Autora: Deborah Levy. Tradução: Adriana Lisboa. Editora: Autêntica Contemporânea. Páginas: 192. Preço: R$ 54,90.

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