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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Ao receber o Prêmio Governo de Minas Gerais, em 2008, Antonio Candido (1918-2017) se descreveu como “um crítico de outro tempo”. Lembrou que sua formação intelectual se dera nos anos de 1930 e 1950. “A partir de então”, disse, “não incorporei o que se criou no mundo dos estudos literários (...)Não sou de temperamento renovador”. Era pura modéstia. Professor emérito da USP, Candido é reconhecido como o fundador da crítica literária moderna no país, responsável por institucionalizar, na academia, o que antes costumava ser um ensaísmo impressionista que ocupava os rodapés dos jornais. Sua obra traz a marca do tempo, claro, mas continua viva e suscitando debates. Não são poucos os pesquisadores do nosso tempo que dialogam criticamente com as ideias do professor, sociólogo de formação, que defendeu “o direito à literatura”.

O editor Flávio Moura, aliás, afirma que fomentar o debate em torno do pensamento de Candido é o desejo da Todavia, que, até o fim do ano que vem, relançará 17 obras do crítico. Nesta sexta-feira (24), cinco títulos chegam às livrarias: “Formação da literatura brasileira” (1959), que apresenta as principais linhas de força que organizam a obra; “Os parceiros do Rio Bonito” (1964), tese sociológica sobre o ocaso do modo de vida caipira; “Literatura e sociedade” (1965), que analisa como a forma literária incorpora a realidade social; “O discurso e a cidade” (1993), que traz ensaios célebres, como “Dialética da malandragem”; e “Iniciação à literatura brasileira” (1997), espécie de resumo da produção literária brasileira destinada (originalmente) a leitores estrangeiros. Segundo Moura, esta primeira fornada de livros apresenta Candido não somente como “o grande crítico literário”, mas também como um “intérprete do Brasil”.

Nascido no Rio, criado em Poços de Caldas (MG) e lumiar da intelectualidade paulistana, Candido de fato merece o título. “Formação da literatura brasileira” se tornou tão clássico quanto os ensaios de interpretação do Brasil que vieram à luz nos anos 1930. No entanto, no prefácio da segunda edição da obra, ele negou que estivesse fazendo teoria. “As ideias teóricas que encerra só aparecem como enquadramento para estudar as produções e se ligam organicamente a este desígnio”, escreveu.

Nacionalismo

O aviso de nada adiantou, pois Candido era mestre em elaborar conceitos, como “sistema literário”, apresentado na “Formação”. O crítico argumentou que tal sistema depende de um tripé formado por autor, obra e público, cuja “interação dinâmica” cria uma certa tradição literária. Dedicou-se, portanto, a analisar os “momentos decisivos” de formação do sistema, o arcadismo e o romantismo, deixando de lado “manifestações literárias” anteriores ao século XVIII, como o barroco, que se desenvolveu em um período em que o tal tripé ainda não se sustentava.

Nas décadas seguintes, o conceito de sistema literário foi apropriado e contestado por outros críticos. O poeta concretista Haroldo de Campos, por exemplo, denunciou o “sequestro do barroco”.

Candido também foi acusado de nacionalismo. Sua análise tem como horizonte a formação do Brasil como nação e, por isso, não abre muito espaço para as literaturas chamadas “regionalistas”. Mas isso não intimidou Luís Augusto Fischer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que se apoiou no autor para pensar a literatura gaúcha. Ele se recorda de um episódio ilustrativo da generosidade de Candido com novas gerações de críticos.

— Ao visitá-lo com outros pesquisadores, disse que a tarefa da nossa geração era escrever uma nova história da literatura brasileira. Ele disse o seguinte: “Vocês assistiram a ‘O poderoso chefão’? Em uma cena, Don Corleone chama um de seus capangas e manda matar um fulano. O capanga responde que vai ser difícil, mas vai dar. Escrever uma nova história da literatura brasileira é assim: difícil, mas dá” — conta o gaúcho.

Segundo Fischer, Candido legou um “aparelho conceitual” que ainda rende frutos nas mãos de pesquisadores. Basta conferir o livro “Duas formações, uma história” (Arquipélago), do professor da UFRGS, que aponta o que considera algumas “limitações” do pensamento do professor da USP. Uma delas seria o pressuposto, nunca explicitado, de que a formação da literatura brasileira atinge seu ápice no modernismo paulista, como se toda produção literária do país tivesse uma trajetória única, que deságua na Semana de Arte Moderna.

Além disso, na “Formação”, Candido comparou desfavoravelmente a literatura brasileira às europeias. “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”, escreveu. Essa frase fere ouvidos de críticos “decoloniais”, para quem produção dos países periféricos não deve ser julgada por parâmetros importados das metrópoles. Fischer defende que Candido teria oferecido uma análise mais rica se tivesse comparado a literatura brasileira com a de países nascidos de processos históricos semelhantes ao nosso, como a Argentina ou os Estados Unidos.

A crítica literária Ieda Lebensztayn confirma que Antonio Candido tinha preocupações “nacionalistas”, mas nunca “patrioteiras”. O autor, diz ela, procurava vislumbrar, na forma literária, “dinâmicas da sociedade brasileira”, como a “dialética da malandragem”, descoberta na leitura de “Memórias de um sargento de milícias”. Os personagens do romance de Manuel Antônio de Almeida, percebeu Candido, vivem no “balanceio caprichoso entre ordem e desordem”, como se não existisse pecado. Até o Major Vidigal, personificação da ordem, cai na malandragem.

Candido lê essa dialética em chave relativamente positiva. Chama o romance de “fábula realista composta em tempo de allegro vivace”. Há décadas, discípulos do professor se perguntam o que a dialética da malandragem revela sobre o país. Roberto Schwarz, outro nome incontornável da nossa crítica, questionou: malandros mesmo não eram os militares de 1964? Edu Teruki Otsuka, da USP, identificou nas “Memórias” a “dimensão sombria” da malandragem: as rixas e o desejo de vingança que se sobrepõem à incumbência de manutenção da ordem. E João Cezar Castro Rocha, da UFRJ, sugere que a “dialética da malandragem” já virou “dialética da marginalidade”.

— Candido oferece uma radiografia interessantíssima do romance de uma certa forma de sociabilidade brasileira que prevaleceu até os anos 1970. A malandragem é uma técnica social de apaziguamento de conflitos, pois permite o trânsito entre os polos opostos da sociedade, do mais pobre ao mais rico, do hierárquico ao anárquico — explica o professor. — No entanto, depois da ditadura militar, com o aumento da desigualdade, já não é mais possível transitar entre opostos e produzir conciliações macunaímicas. A dialética da marginalidade, que reconheci na literatura de Paulo Lins e Ferrez e no rap dos Racionais MC’s, afirma não a conciliação, mas o conflito.

Candido decerto aprovaria a apropriação irreverente de suas ideias pelas novas gerações. Na “Formação”, ele diz que a literatura “não vive” sem as “elucubrações” e a “base intuitiva” que “manifestam essa paixão de leitor”.

Serviço:

“Formação da literatura brasileira”.

Autor: Antonio Candido. Editora: Todavia. Páginas: 800. Preço: R$ 149,90.

“Os parceiros do Rio Bonito”

Autor: Antonio Candido. Editora: Todavia. Páginas: 376. Preço: R$ 89,90.

“Literatura e sociedade”

Autor: Antonio Candido. Editora: Todavia. Páginas: 232. Preço: R$ 59,90.

“O discurso e a cidade”

Autor: Antonio Candido. Editora: Todavia. Páginas: 328. Preço: R$ 84,90.

“Iniciação à literatura brasileira”

Autor: Antonio Candido. Editora: Todavia. Páginas: 112. Preço: R$ 59,90.

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