Um homem mais velho, obstinado, encara suas limitações numa trajetória que flerta com a morte. Assim se pode resumir a trama de dois romances recentes: “A segunda morte”, de Roberto Taddei, e “Dor fantasma”, de Rafael Gallo, que coincidem numa interrogação: o que significa ser homem?
Não é bem uma “desconstrução”; está mais para decomposição. Física e psicológica. Tanto Gustavo Embaú, protagonista de “A segunda morte”, quanto Rômulo Castelo, de “Dor fantasma”, chegam a um ponto análogo de despojamento de si. A diferença é como chegam lá.
“A segunda morte” toma o caminho da elipse. Gustavo, um homem bem idoso, abandona a vida na metrópole, dirigindo até uma comunidade litorânea de pescadores. Não se saberá por quê. Há pistas, como o impacto da morte do pai e o relacionamento difícil com a família, mas nada conclusivo.
É um acerto do livro, a opacidade do protagonista. Ele vende seu carro, livra-se de qualquer rastro de si e vai para uma pousada. Não faz muitas perguntas; dá ainda menos respostas. Passa os dias mergulhando no mar, o que parece menos um idílio do que um desafio. O corpo se cansa após refeições mais pesadas, é pouco provável que aguente por muito tempo o esforço físico contra as ondas.
Como elas, a distância entre Gustavo e as outras personagens vai e vem. Ele se aproxima de Bianca, a senhora dona da pousada, que não pergunta do passado dele. Tem suas próprias questões: o marido, Heitor, está acamado, vegetativo. Também aqui o romance prefere as elipses. Bianca e Heitor têm idade próxima à de Gustavo, mas toda sua vida juntos fica implícita, submersa nos cuidados cotidianos.
A insistência na elipse e na opacidade, porém, talvez traia um problema no desenvolvimento do livro. Ele arranha bem as superfícies, mas não se agarra a nada. A trama meio estacionária contradiz o tema da decadência física em avanço constante; os coadjuvantes e figurantes mal aparecem; Gustavo boia na ação, carregado mais pela vontade autoral que pela coerência.
Não à toa, mais para o fim do livro, é uma tempestade (um fator externo) que movimentará o enredo. Ela exime o protagonista de qualquer ação que pudesse tomar. Talvez o ponto central fosse a insistência em se manter à parte, sugerindo a toxicidade do alheamento masculino. Mas o minimalismo se excede, pois há tantos implícitos que sua força se dilui.
Sentimento de negação
Já “Dor fantasma”, ganhador do Prêmio José Saramago, toma o caminho inverso: explicitar ao máximo. Tudo está às claras, menos para Rômulo Castelo — descompasso que move o romance.
Castelo é um pianista obcecado por Liszt e pela perfeição, tão comprometido com seu ideal que não percebe o rastro de sofrimento, inclusive em si. Trata de modo gélido a esposa e o filho com paralisia cerebral, e de modo ríspido os alunos na universidade.
A moto de um entregador atinge Castelo à saída de uma aula. Sua mão direita precisa ser amputada. A negação dele piora tudo: está convencido de que, com disciplina e uma prótese caríssima, algumas semanas bastariam para voltar ao piano, a tempo da turnê europeia.
Ao fracasso se soma o ressentimento. Castelo se crê perseguido pelo departamento mesmo quando seus poucos amigos querem ajudá-lo. Vê zombaria em gestos de carinho. Logo entra em rota de colisão com os alunos munidos de redes sociais. A decadência se acelera, e quem gira a engrenagem é o próprio pianista.
O livro tem uma monotonia ambivalente. Por um lado, o positivo, ele nos coloca num ponto de vista odioso na tentativa de compreendê-lo. Uma ousadia bem-vinda. Se a personagem tem algo de estereótipo, o romance o relativiza por meio do compromisso intransigente com a perspectiva de Castelo, mesmo na cena cruel do concerto em sua homenagem. O surto do pianista toma proporções gigantescas.
Por outro lado, a monotonia também traz um custo num romance longo, dada a média atual. Algumas passagens soam cansativas, em especial porque o livro se fia demais no discurso indireto livre. Talvez fosse possível variar a maneira de transmitir a perspectiva de Castelo, bem como ampliar a paisagem emocional para além da exasperação.
Isso leva “Dor fantasma” a uma linearidade de que, a seu modo, “A segunda morte” também padece. Seja pela elipse, seja pelo excesso, eles parecem coincidir nos seus retratos da masculinidade em crise: obstinação, alheamento, dificuldade de lidar com as próprias limitações. A linearidade do crepúsculo.
Henrique Balbi é escritor e professor de Literatura
‘A segunda morte’. Autor: Roberto Taddei. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 136. Preço: R$ 64,90.
‘Dor fantasma’. Autor: Rafael Gallo. Editora: Biblioteca Azul. Páginas: 352. Preço: R$ 59,90.