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Por André Rosa*

Existem poucos autores cuja obra tenha sido tão discutida, traduzida e adaptada como a de William Shakespeare. E as novas traduções apresentam outras possibilidades de leitura para suas obras a partir da recriação do texto original em uma outra língua. É o caso desta nova edição bilíngue de “Rei Lear”.

Escrita entre 1603 e 1606, a tragédia se estrutura em dois núcleos: de um lado, o rei Lear e as três filhas, Goneril, Regan e Cordélia, compondo a trama principal; do outro, Gloucester e os filhos, Edgar e Edmund.

No primeiro eixo, a história se desenvolve com a divisão do reino promovida por Lear entre suas filhas, em que ele termina por deserdar a caçula, Cordélia, por não se sentir suficientemente cortejado nas palavras dela. No segundo eixo, Edmund, filho bastardo de Gloucester, convence o seu pai de que o outro filho, o legítimo Edgar, está planejando assassiná-lo a fim de se apropriar da herança.

Em Rei Lear, o equívoco é um pecado capital cujo preço é pago com a vida. Lear, por se deixar seduzir pelas belas palavras de suas filhas mais velhas (“aquele que vos seduziu com uma fala pura foi um puro canalha”), encontrou a loucura e pereceu. Gloucester, por sua fé cega em Edmund, teve os olhos esmagados; e, por ironia do destino, somente depois de cego ele conseguiu ver que seu filho Edgar era inocente. Em ambos os casos, a paixão irracional está na origem da catástrofe — um é vítima do próprio orgulho; o outro, da credulidade.

Se Shakespeare criou um arcabouço dramatúrgico cujos tipos até hoje dizem muito a respeito da natureza humana, as suas raízes parecem se ancorar em um passado remoto. Para além de Lear e Gloucester, personagens construídos a partir de lendas históricas bretãs, o conceito do enredo remete o leitor inevitavelmente às narrativas bíblicas, visto que a religião católica exerceu domínio por séculos sobre as ilhas britânicas e cuja influência se fazia sentir na Inglaterra de Shakespeare, apesar da predominância oficial do protestantismo.

Conflito fratricida

No posfácio que ilumina a edição, o tradutor Rodrigo Lacerda observa que não seria absurdo pensar na trajetória de Lear como a de Cristo no Calvário, ao passo que seu sofrimento também evoca outro personagem bíblico, Jó, que, assim como Lear, foi privado de todos os seus bens e, mesmo assim, se manteve sólido em sua paciência.

Do mesmo modo, o conflito fratricida que atravessa a tragédia shakespeariana parece carregar a marca de Caim, assassino de seu irmão Abel no livro de Gênesis. Não é sem razão que Edmund, para incriminar o irmão, tenha ferido de propósito o próprio braço, passando a carregar a marca de um ferimento.

Se, por um lado, a estrutura de “Rei Lear” se assemelha à de “Henrique IV”, por outro há uma distinção elementar que a distancia das demais peças históricas do dramaturgo inglês. O poeta W. H. Auden, em suas aulas sobre Shakespeare, aponta que certos elementos do enredo de Rei Lear não são amplamente iluminados, como o conflito entre os ingleses e os franceses, cuja motivação não fica inteiramente clara, ou a disputa entre Regan e Goneril pelo amor de Edmund — passagens que, em peças históricas, certamente teriam sido desenvolvidas, mas que na tragédia de Lear servem para realçar o estado de espírito dos personagens em sua ruína comum.

Nesta nova tradução, Lacerda opta por manter a oscilação tal qual o texto original, pois, segundo ele, Shakespeare se valeu dessa alternância para recompor no texto o estado de espírito dos personagens: se é um “bêbado ou um louco, ou se é cômico além de uma certa medida, ou vem de uma condição social muito baixa, sem dominar a língua culta, se há uma mudança abrupta no clima da cena, ou entre uma cena e outra, assim como nos momentos em que um ou mais personagens são especialmente maus, como se tanta maldade desorganizasse o ritmo do mundo, as falas tendem a ser em prosa”. Por outro lado, “se o personagem é sábio, nobre, cortesão ou bajulador, ou se está apenas em perfeito domínio de suas faculdades mentais, ele em geral fala em verso”.

Com esta edição de “Rei Lear”, o leitor tem a oportunidade de conhecer um clássico absoluto da literatura, guiado pela acurada tradução e pelo esclarecedor estudo crítico de Lacerda, que supera qualquer expectativa.

André Rosa é mestrando em literatura comparada pelo PPGCL-UFRJ.

Serviço:

‘Rei Lear

Autor: William Shakespeare. Tradução: Rodrigo Lacerda. Editora: 34. Páginas: 448. Preço: R$ 99. Cotação: Ótimo.

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