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Por Ruan de Sousa Gabriel

Lançado na França em 1991 e transformado em filme em 2020 por Danielle Arbid, “Paixão simples” é um relato da obsessão de Annie Ernaux por um ex-amante, um homem um pouco mais jovem, casado, vindo do Leste Europeu, chamado apenas de A. (assim como o estudante universitário com quem ela se relaciona em “O jovem”).

Ernaux conta ter vivido essa paixão “de forma romanesca”. Passava os dias tensa, esperando um telefonema, uma vista dele. Não se importava que A. não se interessasse por “coisas intelectuais e artísticas” e preferisse ver “os programas de quiz e as novelas”. O desejo parece arrefecer o pendor sociológico de escritora: em vez de questionar como os gostos de A. refletem suas origens sociais, ela aprende a desfrutar do próprio lado “novo-rico”. Trocou os livros pelos horóscopos das revistas femininas, a música clássica pelas canções de amor. Deixou de ser pão-dura e dava esmolas prodigamente. Comprava vestidos e lingeries para impressioná-lo. E desejava o “ócio completo” para se entregar “sem limites às sensações e narrativas imaginárias da minha paixão”.

Quando o caso termina, ela começa escrever com o objetivo de “permanecer naquele tempo”, como se, ao registrá-lo, pudesse reviver todo aquele prazer. Talvez por isso o ritmo de “Paixão simples”, que estava fora de catálogo no Brasil desde os anos 1990, seja mais ágil que o de outros livros de Ernaux. A escrita é tensa, dolorosa, parece nascida das “notas desordenadas” que ela tomava enquanto esperava ansiosa a chegada de A. “Este texto aqui é apenas o resíduo, um mínimo vestígio, daquele outro texto, vivo”, diz.

Sinceridade

A certa altura, Ernaux se pergunta “qual é a forma em que estou escrevendo, se a do testemunho, da confissão tal como praticada nos diários femininos, ou se a do manifesto ou do processo verbal, ou até do comentário textual”. Essa dúvida acompanha o leitor à medida que a leitura avança: esse vestígio do vivido que temos diante dos olhos, esse texto residual, é o quê?

Se lido como diário, “Paixão simples” parece incompleto, embora esteja impregnado da sinceridade dos escritores que esperam não ser lidos por ninguém. Em vez de retratar o desenvolvimento de uma experiência, como fazem os diários, o texto é um inventário de um acontecimento passado, uma tentativa de recuperá-lo. E mais: Ernaux de fato escreveu um diário sobre sua paixão por A., publicado na França em 2001, com o título “Se perdre” (Se perder).

E notas de rodapé são mais comuns em comentários textuais do que em diários. “Paixão simples” tem menos de 60 páginas e sete notas. Em uma delas, a autora justifica a escassez de detalhes sobre A.: “A obra mais importante para ele é essa vida”. Para Ernaux, a vida é obra incompleta. É preciso comentar o texto vivido, como ela faz em seus livros, identificando como as dinâmicas sociais moldam a vida íntima, o político em suas memórias afetivas.

Conjunto da obra

Mas é quando lido como manifesto que “Paixão simples” realmente parece jogar luz sobre o conjunto da obra da autora. Essa hipótese ganha força quase ao final do texto, quando Ernaux escreve: “Fico me perguntando se, na verdade, não escrevo para saber se os outros fizeram ou sentiram as mesmas coisas que eu, ou então para que achem normal senti-las. E até mesmo para que as vivam, por sua vez, sem lembrar que um dia leram em certo lugar alguma coisa sobre ao assunto”.

Talvez toda a sua obra seja um manifesto. Um manifesto contra a vergonha (da pobreza da infância, das escolhas difíceis que nos salvam na juventude) e a favor da liberdade (inclusive de deixar os livros de lado, ligar na novela e amar sem culpa).

Serviço:

‘Paixão simples’

Autora: Annie Ernaux. Tradução: Marília Garcia. Editora: Fósforo. Páginas: 64. Preço: R$ 54,90.

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