O protagonista de “Quando os pássaros voltarem”, do espanhol Fernando Aramburu, decide que acabará com a própria vida. “Não vou durar muito tempo. Um ano. Por que um ano? Não faço ideia. Mas esse é meu limite final”, revela o personagem. Ele anuncia, assim, que viverá até 31 de agosto de 2019. O romance é o diário de Toni, professor de Filosofia acostumado com o desinteresse dos adolescentes pela matéria. “Não prometo delegar à Natureza o poder de decidir o momento de eu lhe devolver os átomos que peguei emprestados”, planeja.
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Toni vive sozinho com a cachorra Pepa em Madri. Ele é um homem branco de meia-idade, divorciado e pai de um rapaz — o jovem se radicaliza em busca de aceitação e, com sua geração, não enxerga perspectivas em uma Espanha que não entregou o resultado prometido pelo neoliberalismo das décadas passadas.
Aramburu foi capaz de criar uma voz completamente original para seu narrador que, mesmo revelando suas mesquinharias, não consegue ser de todo desagradável. O escritor elaborou um tom que mistura sinceridade brutal com um humor ácido. É justamente quando as piadas e comentários maldosos do protagonista são moralmente condenáveis que Aramburu consegue arrancar boas risadas do leitor.
Tal característica aproxima o espanhol do mexicano Juan Pablo Villalobos. Todavia, em “Quando os pássaros voltarem”, fica evidente o estilo único de Aramburu, marcado por uma quantidade considerável de personagens com matizes que embaralham a classificação entre “bem e mal”, traços que fizeram de “Pátria” (Intrínseca, 2019), seu romance anterior, um sucesso mundial. O livro mostra as consequências das ações terroristas do grupo separatista ETA em duas famílias, antes amigas, e foi adaptado pela HBO para uma minissérie.
‘Tapadinho’, o filho
No novo romance, os matizes também estão presentes. O mesmo Toni que odeia o irmão é solidário com a sobrinha a quem doa sua herança, por exemplo. Antes do início propriamente dito do diário, há um diagrama com todos os personagens. Toni é o centro e dele partem os fluxos que levam às outras pessoas e famílias. Lê-se “Isidro e beata”, para o sogro e a sogra, e “Patamanca”, para o melhor amigo que perdeu um pé em um atentado do ETA. Há qualquer coisa simpática e ao mesmo tempo agressiva nos detalhes do diagrama.
O tom se repete quando ele se refere ao filho, carinhosamente, como “tapadinho”, por não ser a criança prodigiosa que Toni e Amália, sua ex-mulher, esperavam.
Na iminência do divórcio, Toni começa a receber bilhetes anônimos que criticam suas roupas e até delatam que sua mulher tem uma amante. Ele coleciona os bilhetes por anos sem saber quem os escrevia.
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Toni fica obcecado pelo tema da morte e chega a se deitar sobre o túmulo do pai, onde quer ser enterrado. Mas, ao escutar um barulho no cemitério, levanta-se da laje. “Não quero que ninguém pense esquisito sobre mim”, raciocina com um humor aparentemente involuntário.
Toni não tem esperança de um novo relacionamento amoroso após a separação de Amália. Ele se tortura escutando o programa de rádio da ex-mulher, cuja capacidade intelectual é criticada na mesma proporção que sua beleza é elogiada por ele. Além disso, recorda do relacionamento disfuncional de seus pais — ele era violento e ela cuspia secretamente na sopa que lhe servia — e das maldades que cometia contra o irmão mais novo, Raul.
Ao longo do ano, enquanto observa no céu de Madri os andorinhões que migram, vai deixando seus pertences pela cidade, de eletrodomésticos a livros. Conforme o ano passa, sua biblioteca diminui e o diário aumenta. “Se eu pudesse ter optado entre nascer homem ou andorinhão, depois de ter visto tudo que vi, escolheria a segunda alternativa”, pensa.
Em uma de suas caminhadas com Pepa, reencontra Águeda, antiga namorada que abandonou sem remorso por considerar Amália mais bonita. As duas operam em opostos: uma cínica e a outra adorável, uma bela e a outra feia. Águeda funciona como uma metáfora que mostra que a vida nem sempre é como pretendemos. O plano de suicídio de Toni guarda um desejo de controle, ele luta contra a imprevisibilidade da vida para não ser vulnerável. Com sua energia caótica, Águeda é como um outdoor luminoso e piscante que informa que controlar o destino é uma ilusão.
Águeda, Patamanca e Toni acabam formando um trio improvável de amigos, que trocam afeto em forma de provocações no bar. Custou, talvez uma vida, para Toni aprender uma lição que pode ser resumida em uma frase que anotou no seu diário: “Vou dizer apenas que afinal as coisas não saíram como eu planejava.”
Paula Sperb é jornalista e crítica literária com pós-doutorado em Letras (UFRGS)
‘Quando os pássaros voltarem’. Autor: Fernando Aramburu. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Editora: Intrínseca. Páginas: 544. Preço: R$ 99,90. Cotação: ótimo.