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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Quando era adolescente, a baiana Elayne Baeta se perguntava: e se Capitu tivesse traído Bentinho com uma mulher? E se houvesse um casal de meninas entre os capitães da areia, o bando de meninos de rua do clássico de Jorge Amado? E se duas mulheres se amassem às escondidas em “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna? Nas livrarias, ela perguntava discretamente aos vendedores por histórias de amor entre meninas, mas no máximo havia romances protagonizados por homens gays. O jeito era ler as comédias românticas de Meg Cabot e fingir que o galã que encantava a protagonista era uma mulher.

Até que ela resolveu escrever o romance que não encontrava em lugar nenhum. Na internet, começou a contar a história de Íris, uma adolescente que descobre a própria sexualidade ao tentar entender por que a ex-namorada de seu amor platônico a trocou por uma menina. Descrito pela editora Rafaella Machado, da Galera Record, como “um filme da ‘Sessão da tarde’ com representatividade nordestina e sáfica”, “Amor não é óbvio” foi publicado em 2019, já vendeu 70 mil exemplares e consagrou Baeta como das pioneiras no Brasil da literatura YA sáfica. YA (da expressão em inglês para jovens, young adult), portanto, é o que antes se chamava literatura juvenil. E o termo “sáfica” deriva do nome da poeta grega Safo, que há mais de 2.500 anos cantou o amor entre mulheres, e engloba tanto identidades lésbicas quanto bissexuais femininas (os livros sobre meninos que amam meninos são chamados “aquileanos”, porque Aquiles, herói da Guerra de Troia, também se relacionava com homens).

Graças a autoras sáficas como Baeta, Clara Alves, Giu Domingues e Thati Machado (só para citar algumas), nenhuma adolescente precisa mais trocar o gênero dos personagens para ler uma história de amor entre meninas.

— Dentro de mim, há uma Elayne de 14 anos dando pulinhos e gritos históricos: “A gente conseguiu! Agora tem livro para a gente também!” É massa ter ajudado a pavimentar esse caminho — diz Baeta, que apresenta o podcast Lésbica & Ansiosa e é autora do livro de poemas “Oxe, Baby” (20 mil exemplares vendidos).

Fôlego na bienal

Livros sobre meninos gays começaram a chegar às livrarias brasileiras em 2012 e, com mais frequência, a partir de meados da década, quando surgiam autores nacionais como Vitor Martins e Lucas Rocha. Embora a finada editora lésbica Brejeira Malagueta tenha publicado romances de Karina Dias e Rafaella Vieira ainda em 2012, a literatura sáfica só ganhou fôlego a partir de 2019, com a publicação de “O amor não é óbvio”, de Baeta, e “Conectadas” (Seguinte), de Clara Alves, sobre duas garotas que se apaixonam jogando videogame e que já vendeu mais de cem mil exemplares.

Autoras estrangeiras como Dahlia Adler, Leah Johnson e Rachael Lippincott (que começou escrevendo romances héteros) também ajudaram a desbravar o mercado.

Editoras ouvidas pelo GLOBO apontam uma série de fatores que impulsionaram a literatura sáfica nos últimos anos. A tentativa do então prefeito Marcelo Crivella de censurar um livro gay na Bienal do Livro do Rio, em 2019, levou o público a abraçar com força os romances LGBTQIAPN+. E, na pandemia, os jovens passaram a buscar recomendações de leitura no TikTok. Na rede social chinesa que se revelou uma fábrica de best-sellers, é fácil topar com livros protagonizados por meninos e meninas gays, lésbicas e bissexuais.

No entanto, o principal catalisador do boom da literatura sáfica foi a cobrança de leitores (e leitoras) da Geração Z (nascidos após 1995), para quem a diversidade é um valor inegociável. Baeta, por exemplo, foi publicada pela Galera após uma campanha orquestrada nas redes sociais por suas leitoras. Rafaella Machado interrompeu os preparativos do próprio casamento para fechar contrato com a escritora.

Editora da Alt, divisão jovem da Globo Livros, Paula Drummond confirma que, cada vez mais, os leitores pedem histórias que não são centradas apenas em meninos gays.

— Há até demanda pelo uso de palavras que por muito tempo foram estigmatizadas, como “lésbica” — explica. — A literatura sáfica representa a multiplicidade de experiências de leitoras que se entendem como lésbicas, bissexuais, pansexuais ou que não se entendem ainda, mas sabem que gostam de meninas.

Nathália Dimambro, editora da Seguinte, selo juvenil da Companhia das Letras, aponta que o aumento da publicação de títulos sáficos tem levado também a uma diversificação dos enredos.

— Observo três categorias: livros com enredo focado na descoberta da sexualidade ou na saída no armário; livros que reivindicam clichês da literatura, agora vividos por personagens sáficas em posição de protagonismo; e livros em que a sexualidade das personagens não é o foco da história, que pode ser uma ficção científica, um suspense, um drama familiar e assim por diante — explica a editora, que ressalta que o tempo em que lésbicas morriam no final (como na novela “Torre de Babel”, de 1998) já passou. —Por muito tempo, a literatura LGBT se resumiu a histórias trágicas. É essencial publicar histórias felizes para que os jovens LGBT saibam que um futuro brilhante, colorido e pleno é possível.

Primeiro romance sáfico publicado pela Arqueiro, selo da Sextante, “Delilah Green não está nem aí”, da americana Ashley Herring Blake, se apropria de vários clichês românticos ao apresentar uma espécie de Cinderela lésbica que se apaixona pela madrinha de casamento de sua irmã malvada. Delilah, a protagonista, é uma fotógrafa que nem sempre decora o nome das mulheres que leva para a cama, mas não demora a se encantar pela doce Claire, que se atrai sexualmente por homens, mulheres e pessoas não binárias. Blake afirma que quis explorar a dinâmica do casal típico de comédias românticas, formado por uma pessoa “resmungona” e outra que mais parece “um raio de sol”.

— É extremamente importante que as histórias de amor LGBT explorem os mais diferentes clichês românticos — diz a autora, que é bissexual. — Por muito tempo, as grandes editoras só publicaram histórias sobre casais cisgênero e heterossexuais. Agora, há espaço para as histórias que pessoas como eu sempre quiseram ler. É uma época maravilhosa para quem gosta de histórias de amor.

E também para quem gosta de suspense, ficção científica e releituras mitológicas com protagonismo sáfico. É só procurar por títulos como “Luzes do norte” e “Sombras do sul”, de Giu Domingues, que apostam no fantástico e no mistério; “A garota do mar”, de Molly Knox Ostertag, graphic novel em que a protagonista se apaixona por uma criatura marinha do sexo feminino; ou “Última parada” de Casey McQuiston, que inclui uma viagem no tempo.

Segundo Rafaella Machado, da Galera Record, já existem até vilãs sáficas.

— No começo, todas as personagens tinham que ser perfeitas, não podiam representar nenhum estereótipo negativo. Agora, como há mais diversidade, as autoras estão mais livres para construir personagens tridimensionais, não só mocinhas. Tem personagem sáfica que é tóxica, que trai e assim por diante. Antes, elas não podiam errar — explica.

Elayne Baeta não descarta escrever uma história policial ou erótica com protagonismo sáfico no futuro. Por enquanto, ela tem outros planos para seu segundo romance.

— Vai ser uma história de muito amor, bem água com açúcar, com muita cena fofinha e um casal para a gente torcer — promete a escritora. — “O amor não é óbvio” fala sobre a descoberta da sexualidade. No meu próximo livro, quero falar sobre o que acontece depois que a gente se descobre.

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