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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Na escola, a escritora chilena Lina Meruane aprendeu que Gabriela Mistral (1889-1957) era uma “professorinha rural” que enviuvou antes de se casar (o noivo se suicidou) e sofria por não ter tido filhos. Essa imagem era confirmada por poemas como “Pezinhos” (“Pezinhos de menino/ de frio, azulados./ Quem os vê e não os cobre,/ Deus amado?”) e pode até combinar com o retrato sóbrio da poeta que estampa a nota de 5 mil pesos chilenos, mas não com o mural do artista Fab Ciraolo que decorava uma parede em Santiago — justamente do moderno Centro Cultural Gabriela Mistral. Nele, a poeta aparece de jeans e camiseta que cita letra da banda Los Prisioneros (“nous sommes rockers sudamericaines”) , empunha uma bandeira chilena tingida de preto e traz no pescoço o lenço verde que simboliza a luta pelo direito ao aborto.

Educadora, defensora dos indígenas, feminista, lésbica, primeira mulher e primeira pessoa latino-americana a arrematar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1945, Mistral tem ressurgido como ícone progressista no Chile. O presidente Gabriel Boric, ex-líder estudantil, cita seus versos o tempo todo e quer uma estátua dela na capital. Mesmo sem monumento, ela já ocupa o lugar de Pablo Neruda (1904-1973) no coração da esquerda chilena, que não tolera mais os abusos cometidos pelo autor. O poeta, vencedor do Nobel em 1971, chegou a descrever o estupro de uma camareira em suas memórias.

— O feminismo de Mistral era um pouco conservador, mas ela era progressista, se relacionou com mulheres, tomou as rédeas da própria vida — diz Meruane, que organizou a antologia “Las renegadas”, com poemas de Mistral sobre “mulheres transgressoras”.

Autora de “Gabriela Mistral: el proyecto de Lucila”, Ana Pizarro explica que a ditadura de Augusto Pinochet se apropriou da poeta como símbolo do Chile católico e conservador, em oposição ao socialismo de Neruda. No entanto, a partir dos anos 1980, com a emergência dos estudos feministas, surgiu uma nova Mistral: “profundamente democrática, amante e crítica de seu país e ambígua em termos de gênero”. Jamais assumida em vida, a homossexualidade da poeta entrou em foco depois que foram reveladas cartas trocadas entre ela e sua companheira, a americana Doris Dana.Fab Ciarolo conta que pintou a Mistral “repaginada” na fachada do centro cultural que ela batiza em novembro de 2019, quando o Chile vivia uma onda histórica de protestos. A obra foi retirada em fevereiro de 2020 e hoje é parte do acervo da instituição.

— Depois de pronto, o mural começou a se transformar em uma espécie de altar, onde as pessoas iam deixando livros, bichos de pelúcia, brinquedos, caixinhas, mensagens em grafite que ligavam Mistral aos protestos.

Nobel em Petrópolis

Segundo Pizarro, “Gabriela Mistral” não era só o pseudônimo de Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, mas uma personagem que permitiu à poeta, “uma mulher de origem rural, humilde e de traços mestiços”, se integrar em um “país classista, sexista, homofóbico e racista”.

Nascida em Vicuña, Mistral Lecionou em diversas cidades chilenas e foi convidada pelo governo mexicano a colaborar com a reforma educacional do país. Em seus ensaios, defendeu o direito das mulheres ao voto e à educação. Também foi diplomata e representou o Chile em diversos países — inclusive no Brasil, onde fez amizade com Mário de Andrade, Cecília Meireles e Henrique Lisboa, que traduziu seus poemas.

Mistral vivia em Petrópolis (onde nomeia uma biblioteca) quando recebeu a notícia do Prêmio Nobel de Literatura por sua poesia profundamente religiosa e preocupada com problemas sociais, reunida em livros como “Desolação” e “Lagar”. No Brasil, porém, ainda é vista como uma professorinha carola e não é fácil encontrá-la nas livrarias. Há apenas três edições recentes de seus livros (ver abaixo), todas por casas independentes. Não dá para botar a culpa nos herdeiros. O espólio da poeta é administrado por uma ordem franciscana, que pede apenas uma doação das editoras em benefício das crianças pobres de Montegrande, vilarejo onde a autora passou a infância.

— Me incomodava a ausência de Mistral nas prateleiras daqui. Só encontrava seus livros em sebos. Quais seriam os motivos? Por ser poeta? Mulher? Latino-americana? — questiona Marcelo Del’Anhol, editor da Olho de Vidro.

Professora da Universidade Estadual de Londrina, Jacicarla Souza da Silva concorda que o fato de ser mulher limitou a circulação da obra da poeta, mas lembra que ela formou uma “rede” com outras autoras, como Cecília Meireles e a argentina Victoria Ocampo, na tentativa driblar obstáculos.

Igor Miranda, editor da Pinard, acrescenta que os versos melancólicos e bíblicos da chilena não são uma leitura fácil. E Leonardo Gandolfi, professor da Universidade Federal de São Paulo, aponta que Mistral não se filiou às “vanguardas latino-americanas”, que produziram a poesia em espanhol mais apreciada atualmente (não só no Brasil).

Meruane concorda que Mistral não é nenhuma modernista e que isso pode prejudicar a recepção de sua obra, mas afirma que rotulá-la de “antiquada” e mais própria para a leitura de crianças é “injusto”:

— Mistral está sujeita a seu tempo e por isso soa um pouco antiga. No entanto, ela tratou de problemas universais e das múltiplas realidades das mulheres. Sua poesia é sólida, de enorme beleza e, lida em seu contexto, transgressora.

(Colaborou Emiliano Urbim)

Mistral no Brasil

“Balada da estrela e outros poemas”: publicada pela Olho de Vidro, a antologia se destina ao publico infantil. A seleção traz poemas breves que lembram cantigas de roda ou de ninar, como “Tudo é ciranda”: “Os rios são cirandas de meninos/ brincando de ser ver no mar.../ As ondas são cirandas de meninas/ brincando de a Terra abraçar...”. Quase todos os textos foram retirados do livro “Ternura”, de 1924. A tradução é de Leo Cunha e as ilustrações de Leonor Pérez.

“A mulher forte e outros poemas”: traduzida por David Diniz e publicada pela Pinard, a edição é bilíngue e inclui mais de 80 poemas dos principais livros de Mistral: “Desolação”, “Ternura”, “Tala” (dedicada à mãe morta), “Lagar” e o póstumo “Poema do Chile”, no qual o eu lírico fantasmagórico percorre o país acompanhado de um menino indígena e de um huemul (cervo andino).

“Poemas escolhidos”: a edição da Peirópolis também é bilíngue e resgata as traduções clássicas da poeta mineira Henriqueta Lisboa, que foi amiga da chilena. Lançada originalmente em 1969 pela editora Delta, a antologia reúne sobretudo poemas de amor e alguma prosa poética. Traz ainda um prefácio de Reinaldo Marques e depoimento da tradutora.

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