Livros
PUBLICIDADE

Por Ângela Maria Dias, O Globo — Rio de Janeiro

Mais recente romance do catarinense Godofredo de Oliveira Neto, membro da Academia Brasileira de Letras desde o ano passado, “O desenho extraviado de Hieronymus Bosch” configura um repertório sintético de motivos, tendências e obsessões que habitam toda a sua obra anterior.

A vocação dialógica do romancista, tanto com a tradição artística ocidental, quanto com os problemas de seu país e a sua diversidade cultural, desenha um processo rico em contrastes e figura um profuso labirinto de intertextos.

Em “O desenho extraviado de Hieronymus Bosch”, a atualidade do traçado emaranha um conjunto vibrante de questões que dão à bricolagem de fragmentos do enredo, em primeira pessoa, uma palpitação de suspense pelas ações bem costuradas para o envolvimento do leitor.

De um lado, este romance curto apresenta com muita acuidade os últimos dramas do Ocidente e do país por meio da trajetória de seu personagem-narrador, o mestiço Luigi, de pai desconhecido e mãe de família italiana, designado para resgatar um esboço de um quadro de Hieronymus Bosch realizado entre 1475 e 1480. Assim, o especialista em Letras, dublê de advogado, vê-se em Nova York — onde, inicialmente, supõe-se que esteja a obra — a fim de entrar em contato com um parente distante.

Em seguida, após esta primeira excursão resultar em fraude e fracasso, o protagonista dirige-se a Veneza, ao encontro de outro familiar desconhecido, onde, por fim, resgata a ambicionada herança. O fio narrativo basicamente é este, mas sua simplicidade surge entremeada a muitos imbróglios e surpresas, a confundirem o herói inseguro, “ex-coroinha da igreja de Itajaí”, envolto em culpa cristã e sentimento de rejeição.

Dilemas ocidentais

Da mesma forma que o Fábio de “Amores exilados” (2011), Luigi, visto como nigger em Nova York, também se equilibra desastradamente na suspeita do triângulo amoroso com a amada Ana Júlia e o amigo Filipão. Assim, a namorada, como a Muriel daquele mesmo romance, é situada na encruzilhada entre Dr. Jekyll e Mr. Hide e, vista sob o véu da dissimulação, aparece comparada à Capitu, à Joana de Clarice Lispector e à célebre Madame Bovary.

Desta maneira, neste teatro de ciúme e mania de perseguição, Luigi encarna Deus e o Diabo, entre a obsessão do subsolo, “a barata se arrastando devagar no esgoto”, e pesadelos de entremeio, na busca de seu velo de ouro: o esboço de “A extração da pedra da loucura”, de Bosch. Aliás, o título dessa obra pictórica, de certa forma, alude ao desenlace do relato, numa espécie de clareira da esperança. Afinal, com a conquista do quadro, extrai-se, finalmente, a pedra...

Por outro lado, o périplo vem acompanhado de conversas de café sobre os dilemas ocidentais da “derrocada da noção de Estado democrático” e dos primeiros sintomas de uma “gripe estranha que pode ganhar o mundo”. No Brasil, a pauta abrange não só “o modelo econômico recessivo imposto”, a “democracia antes de tudo”, e a necessidade de justiça social, como também a questão do país frente ao “resto da América de língua espanhola”, estranhada por Luigi, mas invocada em sua cafonice reconfortante.

Entretanto, se o engajamento na discussão de causas e impasses sociais está bem contemplado, igualmente a tendência ao ilusionismo da performance não é menos importante nos traçados de “O desenho extraviado de Hieronymus Bosch”. Desse modo, o tema da falsificação de obras pictóricas, inerente ao “Menino oculto” (2005), aqui reaparece com o primeiro esboço posto em circulação pelos personagens de tio Domênico e de Sordi.

Também “A ficcionista” (2012), com sua escrita farsesca, é aqui aludido desde os paratextos: a dedicatória ao personagem Aimoré Seixas dos Campos Salles de Mesquita Ávila, de “Menino oculto”, e a epígrafe de Nikki, a personagem do romance de 2012.

Finalmente, a profusão de temas, bem entretecidos, compõe um painel que ecoa o caleidoscópio de incertezas, em “Amores exilados”. Nesse sentido, o problema do racismo, encarnado no protagonista, se enlaça com o enigma do feminino, em Ana Júlia, e se combina ao desejo de mudar o Brasil, mencionado com assiduidade pelos personagens mais atuantes. Por fim, o Brasil dos últimos anos, com seus temas candentes, dá a este romance de 2023 não só o formato de uma estrela de muitas pontas, mas, também, o caráter de uma recriação ficcional do ar desses tempos recentes.

* Ângela Maria Dias é professora titular de Literatura Brasileira da UFF

Mais recente Próxima Em livro, crítico de arte Jonathan Crary diz que o futuro deve ser off-line: 'Fim da linha para a vida no planeta'
Mais do Globo

Testemunhas relataram que muitas pessoas caíram umas sobre as outras enquanto corriam em direção a uma vala cheia de água em uma encosta

'Caos e terror': sobreviventes de esmagamento em massa que deixou 121 mortos na Índia descrevem pânico geral

Democrata se atrapalhou nas palavras e perdeu o raciocínio durante embate contra Donald Trump, o que intensificou temores sobre sua acuidade mental

Após desastre em debate, Biden tenta conter pressão de democratas 'pesos-pesados', e porta-voz rechaça teste cognitivo

Maressa Crisley Nunes passou uma semana internada. A brasileira foi hospitalizada na madrugada do dia 25, após fraturas no rosto

Brasileira espancada durante assalto no Chile tem alta do hospital

Aeroporto de Incheon, que fica próximo a Seul, teve pousos e decolagens suspensos por cerca de três horas na última quarta-feira, quando um balão caiu próximo a um terminal de passageiros

Mais de cem voos afetados na Coreia do Sul pelos balões com lixo enviados pela vizinha Coreia do Norte

Lucy Letby tentava matar 'Baby K' na unidade neonatal onde trabalhava quando consultor sênior percebeu baixa dos níveis de oxigênio de paciente

Serial killer de bebês: enfermeira é considerada culpada de tentativa de assassinato de 8ª vítima

Decisão prevê pagamentos de R$ 25 mil diante dos ataques feitos pela internet

Funkeiras Priscila Nocetti e Verônica Costa são condenadas por ofensas mútuas