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Por Eduardo Graça — São Paulo

Quase no fim de “Meu irmão, eu mesmo”, João Silvério Trevisan empareda o leitor: “Por que alguém iria ler algo tão doloroso?” A pergunta, àquela altura inócua, também transborda razão de ser. No livro lançado hoje, o escritor empurra sem anestesia e com coragem o dedo na ferida de se perder um grande amor. No caso, o companheiro é o irmão mais novo, Cláudio, morto em 1994, aos 48 anos, por um câncer linfático.

À via-crúcis do lado de lá do espelho se une coincidência trágica. Dois anos antes, também aos 48 anos, João se descobrira infectado pelo vírus HIV, fato que a família, aterrorizada pelo possível massacre do estigma, decidiu manter entre os mais íntimos.

Só agora um dos militantes pioneiros dos direitos LGBTQUIA+ no Brasil torna o fato público, em obra reveladora, abusadamente desrespeitosa em relação às fronteiras da autoficção com a memória literária, assim traduzida em uma de suas velozes 252 páginas: “Eis-me aqui, o infectado pela vida, levando adiante a árdua tarefa de ter sobrado. E, com isso, relatar as memórias da dor.”

— Eu não tinha a menor intenção de vender a pílula da felicidade. Quis fazer justamente o oposto, sem, é claro, ser sádico comigo mesmo, com Cláudio, com nossa família ou com quem ler o livro — diz.

Trevisan recebe O GLOBO no apartamento em que vive há duas décadas na Avenida São Luís, no Centro de São Paulo. Os cabelos brancos, fartos e lisos, são ímã tanto quanto sua agilidade. Aos 78 anos, antes de dar uma volta pelas cercanias da Praça da República com a cachorrinha Bela, negocia — com delicadeza e firmeza, nomes femininos marcados a ferro e fogo em sua trajetória — poses para as fotos desta reportagem.

Ao observá-lo se encarando no espelho da sala, é impossível não pensar em como ele retratou Cláudio em “Meu irmão, eu mesmo”: o mais belo dos três irmãos e uma irmã Trevisan, apaixonado pelos livros, dono de livraria em Jundiaí, no interior paulista, não por acaso batizada Dom Quixote, seu melhor amigo. E em como a família encarou o câncer “de todos nós”, da descoberta aos tratamentos, da revolta ao fim.

— Se é verdade que todos sofrem, talvez a singularidade mais explícita desta narrativa seja justamente a de não ser agradável por si mesma — sugere o autor.

Há, no entanto, outras primeiras vezes em “Meu irmão, eu mesmo”. A literatura ficcional de Trevisan sempre se confundiu de forma proposital com sua vida. Um dos idealizadores, em 1978, de “O Lampião da esquina”, primeira publicação sobre o universo gay com distribuição nacional no Brasil, ele oferece novas reflexões em “Meu irmão, eu mesmo” sobre nuances, inclusive a erótica, das relações homoafetivas. Mas desta vez centra seu olhar, com resultado avassalador, no amor profundamente correspondido entre um homem gay e um heterossexual.

O escritor João Silvério Trevisan — Foto: Maria Isabel Oliveira
O escritor João Silvério Trevisan — Foto: Maria Isabel Oliveira

Como pode esperar o leitor minimamente familiarizado com a obra do autor de petardos como “Devassos no Paraíso” e “Seis balas num buraco só — A crise do masculino”, “Meu irmão, eu mesmo” é a antítese da autoajuda. Nem por isso Trevisan se avexa em dividir no livro descobertas menos óbvias do que parecem, como a de que “o fator mais deslumbrante numa relação amorosa entre homens não é o tesão, mas a ternura”. Filhos de um pai alcoólatra e ausente, ele e Cláudio afrontavam o machismo imperante se saudando com um selinho.

— Quando contei ao Cláudio que eu era gay, ele não só me acolheu como foi além: “João, se já te admirava, agora mais ainda.” O tamanho do que ele disse, sentiu e dividiu comigo no momento em que eu ajudava a fundar o movimento gay no país é imensurável. Não tenho a menor dúvida de que ter perdido Cláudio foi definidor para a minha vida— diz ele.

Fracassos

Segundo tomo de trilogia biográfica iniciada com “Pai, pai” em 2017, “Meu irmão, eu mesmo” é dedicado ao irmão, à mulher dele, Ziza, e às duas filhas que, conta Trevisan, se emocionaram muito com a possibilidade de descobrir no livro um pai desaparecido quando eram muito meninas. Inicialmente, a história terminaria com a morte de Cláudio. Ao escrever, Trevisan percebeu, no entanto, se tratar de pretensão tola, condenada já no título do relato, já que “é preciso continuar narrando minha própria morte anunciada. Espelhando (assim) a morte do meu irmão”.

— Maltratamos muito nossos fracassos, mas eles nos definem mais do que pensamos. É preciso encontrar uma felicidade mais verdadeira, que não é a de um selfie infinito de Instagram. Superei, com a doença do Cláudio, e ao entrar, eu mesmo, na fila da morte, a fantasia da perfeição que abole a dor — afirma.

Para além da tragédia que golpeou uma família brasileira,é possível identificar, de forma mais pedestre, outros vilões em “Meu irmão, eu mesmo”. Entre eles estão os componentes de hedonismo, vaidade e hipocrisia que teimam em nos cercar, mesmo quando se mira a morte de perto. Encará-los é um dos maiores trunfos desta cerimônia do adeus a que João Silvério Trevisan nos intima a acompanhar.

‘Nós jamais fomos candidatos à beatitude’

Em dezembro de 1992, João Silvério Trevisan descobriu que estava infectado com o vírus HIV. A fase ainda inicial do tratamento com o coquetel de medicamentos traduzia o resultado do exame como sentença de morte. Os irmãos Toninho, Cláudio e Lurdinha se opuseram a seu desejo de revelar o fato publicamente. Ficaram cientes família, amigos e parceiros sexuais. Um dos principais líderes pelos direitos das pessoas LGBTQUIA+ no país não dividiu com a comunidade desproporcionalmente afetada pela Aids seu embate com a morte. A contradição gritante pulsa na leitura de “Meu irmão, eu mesmo”.

— Com o tempo, dei o braço a torcer a meus irmãos. Ainda se examina pouco a maneira como nós, infectados, fomos rejeitados por parte da comunidade LGBT que, em estado de pânico, recusava o que podia significar a morte — diz.

Uma de suas primeiras reações, conta, foi se questionar “e o que farei com meu amor agora?”. Seu desejo não fora infectado. Trevisan está casado há seis anos com um homem “que não faz ou crê não fazer parte da comunidade LGBT”.

— Quando contava que era HIV+, em excelente estado de saúde, todos iam embora. Ele me acolheu, disse que isso não mudava em nada o amor que sentia por mim. Estamos felizes — diz.

O escritor trata no livro do debate interno de consciência sobre o peso político da exposição pública àquele momento. Traça um paralelo com o sociólogo e militante Herbert Daniel, vitimado pela Aids nove meses antes de Trevisan se descobrir infectado. “Queria que outros infectados se sentissem mais tranquilos, menos escondidos, tal qual aconteceu comigo após ler a declaração de Daniel”, escreve.

Ao mesmo tempo, falava em entrevistas da doença de Cláudio, que, inicialmente, fora informado ter 80% de chances de cura. “Não me sinto culpado, apenas incompleto (...) tenho medo de que, sutilmente, meu irmão se sinta decepcionado ou traído ao me ver bem vivo, enquanto se debate com a possibilidade da morte próxima. Não era isso que se esperava. O marcado para morrer era eu”, escreve.

Trinta anos depois e muito vivo, Trevisan celebra a “vanguarda política” da comunidade trans e observa os embates no universo LGBTQUIA+ ponderando que “jamais fomos candidatos à beatitude”. Sacralizar grupos vulnerabilizados, alerta, pode se revelar uma armadilha. Os guetos, crê, ao mesmo tempo protegem e exacerbam a margem.

—Sou estigmatizado por acharem que, como veado, devo falar para veados. Quero dialogar com todo o Brasil. É ótimo a Parada LGBT ter se tornado uma festa de todos. Nós, gays, ensinamos o Brasil a amar. Em meio a tanto ódio, essa é uma senhora contribuição — diz.

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