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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Em um de seus ensaios mais conhecidos, “As pequenas virtudes”, a escritora italiana Natalia Ginzburg (1916-1991) aconselhou os leitores a “estimular em nossos filhos o nascimento e o desenvolvimento de uma vocação”. De passagem por Sttutgart, na Alemanha, Lisa Ginzburg, neta da autora de “Caro Michele”, confirma ao GLOBO que a avó a realmente encorajou em suas ambições de se tornar escritora.

— Minha relação com minha avó foi fortíssima. Eu tinha 25 anos quando ela morreu e morávamos perto. Hoje percebo que me tornar escritora foi mesmo uma escolha corajosa. Não é fácil ter esse sobrenome na Itália — diz ela, que é filha de Carlo Ginzburg, intelectual responsável por popularizar a “micro-história”, e lança pela primeira vez um romance no Brasil: “Cara paz”.

Natalia deixou outro valioso conselho de escrita para a neta no ensaio “O meu ofício”: não enfileirar palavras pescadas “por acaso fora de nós”, enganando espertamente o leitor, mas procurá-las dentro de si.

— Penso bastante nesse texto. É imperativo buscar a própria voz e não usar palavras falsas. Dá uma felicidade profunda encontrar a palavra justa. É uma coisa rara — afirma Lisa, em um português fluente, burilado com canções de Maria Bethânia e a prosa de Clarice Lispector.

A leitura de “Cara paz” prova que Lisa soube ouvir a avó e descobriu uma voz própria, que prescinde de “palavras tomadas de empréstimo ou furtadas aqui e ali”. Uma das palavras que a escritora encontrou em si mesma é “carapaça”. Em italiano: “carapace”, inusitada junção de “cara” (que tem os mesmos sentidos que em português) e “pace” (paz). O jogo de palavras percorre todo o livro: a narradora, Maddalena, italiana que vive em Paris e é tomada pelo desejo de retornar a Roma, identificava-se com a tartaruga de estimação de sua infância, enquanto sua irmã mais nova, Nina, preferia as onças.

Ao longo do romance, Maddalena recorda sua “infância explodida”: ela e a irmã foram abandonadas pela mãe, uma argentina chamada Gloria, cujos “olhos de espertinha, de estrangeira que sabe roubar o mundo novo” talvez lembrassem os de Capitu. O pai deixou as irmãs aos cuidados de uma atlética preceptora francesa, Mylène.

Primogênita, Maddalena se tornou depositária das lembranças dessa infância excêntrica. Coincidentemente, seus conhecidos franceses a chamam de “Madeleine”, o mesmo nome do confeito que ativa a memória involuntária do narrador de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust.

O tempo todo, ela é interpelada pelas mensagens de WhatsApp da irmã, que é hábil no uso de emojis. Nina é exuberante como a mãe, excessivamente categórica, viciada em julgar e vive se envolvendo em conflitos. Protetora, Maddalena nunca conseguiu se desligar da irmã e criar uma vida que fosse só sua. Além de Nina, só formou laços significativos com o marido e uma amiga esteticista. Escondeu-se em sua “carapaça” para manter uma “cara paz”. Lisa conta que formatar relação das duas irmãs lhe custou muito trabalho.

— Essa dinâmica de identificação e necessidade de se distanciar acontece também nas amizades femininas. Temos uma ligação profunda com essa outra, mas ela também nos limita. Não sei se as relações entre irmãos homens também são assim — explica a italiana, que tem uma irmã mais velha e assume-se feminista, mas diz estar um pouco cansada da última “moda” literária: livros sobre a experiência feminina escritos por mulheres. — Um autor deve saber escrever sobre homens, mulheres, tudo.

É recorrente, no entanto, que leitores lhe digam que “Cara paz” é um livro “muito feminino”. O desejo da mulher, tema caro à última moda literária, é explorado no romance. Tanto que Maddalena só faz a associação entre “carapaça” e “cara paz” em duas ocasiões: ao descrever encontros sexuais que balançaram sua vida.

Lisa também sabe escrever sobre o Brasil. É autora de uma obra infantil sobre Clarice Lispector, um romance biográfico sobre Anita Garibaldi (revolucionária brasileira e companheira do herói da Unificação Italiana), e um livro sobre o “sortilégio” de Salvador chamado “Malìa Bahia”, retrato da cidade para além dos estereótipos que atraem turistas estrangeiros. Também publicou “Per Amore”, romance sobre uma italiana que se apaixona por um bailarino baiano bissexual que aparece morto já na primeira linha da história. Todos são inéditos por aqui.

Aos 15 anos, de férias na Grécia, Lisa teve um “presságio” do Brasil ao ler “Dona Flor e seus dois maridos”, de Jorge Amado. Foi casada com um brasileiro, tem uma filha ítalo-brasileira, viveu em Salvador e no Rio e se alegra quando tem a chance de conversar em português.

— De certa forma, um sentimento privado, o amor, dinamizou meu aprendizado da língua. Sou muito feliz ao falar português. Não sinto a mesma felicidade falando inglês ou francês. Uma parte de mim se exprime melhor em português. Talvez eu tenha sido brasileira em outra vida — diz ela. — Dá para se apaixonar por uma língua e por um país do mesmo jeito que nos apaixonamos por uma pessoa. Para mim, foi assim com o Brasil e a língua portuguesa.

Lisa voltou a morar em Roma há dois anos e está se acostumando novamente à cidade depois de 12 anos em Paris. Escreveu “Cara paz” na França e, assim como sua narradora, decidiu que era “imprescindível” retornar à Itália, que não saia de sua cabeça. Ela também já publicou um livro sobre “nostalgia”: “Buongiorno mezzanotte, torno a casa” (Bom dia meia-noite, volto para casa). A palavra que é idêntica em italiano e em português, mas Lisa, que é quase brasileira, prefere traduzir por “saudade”.

— Estou convencida de que a saudade é o motor da criatividade — afirma.

Capa de "Cara paz", romance da escritora italiana Lisa Ginzburg publicado pela Nós — Foto: Reprodução
Capa de "Cara paz", romance da escritora italiana Lisa Ginzburg publicado pela Nós — Foto: Reprodução

Serviço:

'Cara paz'

Autora: Lisa Ginzburg. Tradução: Francesca Cricelli. Editora: Nós. Páginas: 256. Preço: R$ 70.

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