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Por Renata Izaal — Rio de Janeiro

Derek Chauvin, o policial branco que asfixiou George Floyd até a morte, foi condenado a 22 anos e meio de prisão nos EUA. João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, está em prisão domiciliar por decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Suas penas por estupro de vulnerável e violação sexual mediante fraude ultrapassam 220 anos. A criminalização do racismo e da violência de gênero, como nos casos acima, certamente atende ao desejo coletivo por “justiça”. Mas será que contribui para uma transformação radical das estruturas de sociedades, como a brasileira e a americana, que matam mais pretos, mulheres, indígenas e a população LGBTQIA+? Angela Davis, filósofa, professora emérita da Universidade da Califórnia e nome mais conhecido do feminismo negro abolicionista no mundo acredita que não.

— A História e a experiência mostram que o sistema criminal, a prisão e a polícia não solucionam problemas sociais. Podem até exacerbar esses problemas. Mesmo quando falamos de misoginia e transfobia, por exemplo, é preciso pensar o cenário socioeconômico e não focar de maneira míope no sistema criminal. Precisamos de moradia e educação, de um sistema de saúde física e mental — afirma Davis em entrevista por vídeo, concedida ao lado de Gina Dent, professora da Universidade da Califórnia e especialista em Estudos Feministas e Legais.

As duas lançam agora no Brasil “Abolicionismo. Feminismo. Já.” (Companhia das Letras), livro escrito em colaboração com Beth E. Richie e Erica R. Meiners, também figuras proeminentes nos estudos de gênero, raça e direito. Elas defendem a construção de uma sociedade abolicionista, sem prisões ou criminalização, até mesmo para a violência racial ou de gênero.

As autoras de “Abolicionismo. Feminismo. Já.” (da esquerda para a direita): Angela Davis, Beth Richie, Erika Meiners e Gina Dent  — Foto: Divulgação
As autoras de “Abolicionismo. Feminismo. Já.” (da esquerda para a direita): Angela Davis, Beth Richie, Erika Meiners e Gina Dent — Foto: Divulgação

Na próxima terça-feira, Angela e Gina Dent estarão em Salvador para falar sobre o tema no Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada, em mesa com participação de Denise Carrascosa, professora da Universidade Federal da Bahia e uma das lideranças do coletivo Corpos Indóceis e Mentes Livres, que atua no sistema penitenciário baiano.

— Uma das razões para escrever o livro é fazer as pessoas pensarem que as raízes do movimento abolicionista estão no feminismo negro, nas mulheres que se articularam para libertar os seus. O que sugerimos é que as pessoas deixem de se concentrar nas maneiras em que o feminismo apoiou o encarceramento para pensar nos princípios abolicionistas que articulam as causas sociais, políticas e econômicas do crime, da violência e da opressão — explica Dent.

As quatro autoras defendem que os sistemas de Justiça atuais têm como essência a punição, e que fatores como raça, gênero e sexualidade são determinantes no encarceramento em massa. De fato, dados publicados em 2022 no Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que o país tem 820.689 pessoas no sistema carcerário, e 67,4% são negros. Nos EUA, como mostra o documentário “A 13ª emenda”, da cineasta Ava DuVernay, há mais homens negros presos hoje do que havia escravizados em 1850 (o país aboliu a escravidão em 1863).

Feminismo carcerário

O fardo do encarceramento em massa atinge mais as mulheres, sobretudo as negras. Embora estejam em menor número nas prisões, acabam tendo de sustentar famílias sozinhas. E, como são mães, companheiras e filhas, são elas também as principais apoiadoras dos presos.

— Há um tipo de feminismo, que chamamos de feminismo carcerário, que mede igualdade de gênero pelas penas aplicadas — diz Dent. — As penas por estupro, por exemplo, têm de ser tão longas quanto as penas para outros crimes. Mas essa é uma medida falsa. Reforçar o sistema criminal é ameaçar as pessoas vulneráveis que ele deveria proteger. E, é claro, essas pessoas geralmente são aquelas vistas como ameaças ao status quo. Não são as que se beneficiam das estruturas desiguais produzidas pelos processos históricos de nossos países.

Então, na lógica feminista abolicionista, um movimento como o #MeToo, que levou em 2018 à prisão de Harvey Weinstein, um dos mais importantes produtores de Hollywood, é pouco eficaz? Angela Davis acha que sim.

— Tornar públicos os abusos cometidos contra as mulheres foi muito importante. Mas criminalizar indivíduos não vai solucionar o problema, que está na educação das crianças, na pracinha, nos livros, nos consultórios. O #MeToo é parte do problema porque os poderosos são, em sua maioria, os que são debatidos e advertidos. Quem está tratando dos abusos históricos cometidos contra as trabalhadoras domésticas? Não vamos eliminar o racismo apenas lidando com o racista, e não vamos eliminar a violência de gênero prendendo indivíduos. É preciso reconhecer que essas são questões estruturais e lidar com elas em todas as instituições.

O que Angela Davis, Gina Dent, Beth Richie e Erika Meiners defendem em “Abolicionismo. Feminismo. Já.” é um processo de troca da justiça punitiva por justiça transformativa e responsabilidade comunitária. Não se trata de reparação de danos ou aplicação de penas alternativas, mas de um processo de reconstrução radical da sociedade em que a criminalização dará lugar a um trabalho coletivo de criação de respostas preventivas para reduzir crimes.

Lélia González como inspiração

Já existem iniciativas do tipo em cidades como Chicago, Salvador e Joanesburgo. Nessa última, por exemplo, mulheres queer e transgênero desenvolvem patrulhas de segurança e organizam sistemas de apoio a populações vulneráveis.

Essa é, segundo as autoras, uma visão emancipatória baseada na construção de instituições que afirmam a vida, levam em conta a influência da escravidão na sociedade e derrubam o racismo estrutural e a violência patriarcal.

— Prisões são construções onde o patriarcado branco coloca os corpos com os quais não quer lidar. Uma parte da população está confortável com isso. Mas é preciso penetrar os muros das prisões que nos impedem de pensar problemas estruturais — afirma Davis, para quem o sistema criminal não encarcera apenas fisicamente. — Os limites sobre os direitos reprodutivos das mulheres e a vigilância sobre a sexualidade da população LGBTQIA+ são exemplos. Raça, gênero, riqueza, sexualidade e capacidade sempre definiram quem tem direito à privacidade. A heterossexualidade é um assunto privado, mas pessoas queer, soropositivas, com deficiência e as envolvidas no trabalho sexual sempre estiveram sujeitas à repressão do Estado.

Davis e Dent defendem que o livro não é um manual com regras para um futuro abolicionista, mas uma pesquisa de ideias políticas, movimentos e ativismos pensada para encorajar as pessoas a questionarem o status quo coletivamente e se organizarem de maneira antirracista, anticolonialista e anticapitalista.

— Nos últimos anos, muito ativismo importante foi realizado, mesmo que sem fazer muito barulho — analisa Dent. — Foi por conta desse trabalho prévio que tanta coisa aconteceu após o assassinato de George Floyd (em 25 de maio de 2020). Muito trabalho que parece não ser bem-sucedido, porque não é publicado, na verdade serviu como combustível para as mudanças dos últimos anos.

Ainda de acordo com Davis, a inspiração para esse tipo de ativismo pode estar no Brasil. Em sua última passagem pelo país, em 2019, em conferências realizadas no Rio e em São Paulo, ela exaltou a filósofa e antropóloga brasileira Lélia González, morta em 1994, afirmando que não era preciso buscar referências no exterior.

— O Brasil tem uma História muito importante de feminismo negro, mas também tende a pensar que as boas ideias vêm de fora do país — afirma Davis. — Conheci a Lélia em 1985, e acho que o feminismo negro pode se beneficiar de suas ideias, sobretudo quando ela enfatiza que afrodescendentes e povos indígenas devem atuar juntos.

"Abolicionismo. Feminismo. Já." (Companhia das Letras), livro de Angela Davis, Gina Dent, Erica Meiners e  Beth Richie — Foto: Divulgação
"Abolicionismo. Feminismo. Já." (Companhia das Letras), livro de Angela Davis, Gina Dent, Erica Meiners e Beth Richie — Foto: Divulgação

“Abolicionismo. Feminismo. Já.” Autoras: Angela Davis, Gina Dent, Erica Meiners e Beth Richie. Tradução: Raquel de Souza. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 288. Preço: R$ 59,90.

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