Embora as tecnologias digitais estejam nos engolindo, a literatura brasileira ainda não achou uma forma potente de elaborá-las. Onde está a grande obra da vida virtual, como as que se tem da rural e urbana? Os contos de “O inconsciente corporativo”, de Vinícius Portella, apontam possibilidades interessantes, às vezes realizadas a contento.
- 'Casamos para ter amantes': Zé Celso e Marcelo Drummond mantinham relação aberta
- Zé Celso: laudo aponta aquecedor como provável causa de incêndio em apartamento do dramaturgo
As histórias abordam alguma ferramenta tecnológica. Um linguista tenta programar uma inteligência artificial para criar contos de Jorge Luis Borges. Um rapaz rouba a identidade de uma conhecida, passando-se por ela num aplicativo de relacionamentos. Um burocrata da Guatemala enfrenta um incidente diplomático com um líder de um fórum virtual que coordena tiroteios a escolas. Entre outros.
Os oito contos, mais uma vinheta de abertura, podem ser lidos na chave do “patético”, em ao menos dois sentidos.
Primeiro, o do senso comum, sinônimo de “ridículo”. O teor satírico predomina em histórias como “O Sr. Denner Voltasso Não Entende”, sobre um figurão cujo poder político e financeiro se mantém, embora o de raciocínio esteja se esfarelando. Também é o caso de “366.GGR”, em que um funcionário de uma loja de informática recebe de um estranho a tarefa de converter imagens para o formato “ggr”. Fotos estranhas, de pessoas que não parecem humanas, com algo sombrio a seu respeito.
Oscilações
Tão curtos quanto eficazes, esses contos acertam seus alvos com ironia e um divertido senso de absurdo. Seus narradores oscilam entre a adesão aos fatos contados, dando-lhes um tom de naturalidade, e um distanciamento que afia a sensação de insólito.
A mesma oscilação, no entanto, prejudica outros contos no segundo sentido de “patético”: capaz de comover, causar piedade, tristeza, tragédia etc. Em especial nos contos mais longos que tratam de personagens antipáticas ou mesmo odiosas, a ironia parece frear o envolvimento emocional. É como se a história se preocupasse demais com o “risco” de ser mal entendida. Quer mais se defender dele do que permitir uma imersão no ponto de vista livremente escolhido.
- Livro sobre Teatro Oficina e adaptação de 'A queda do céu': Zé Celso deixa projetos e sonhos em aberto
“Demarcação Diamantina” ilustra a dificuldade. A startup LiveupCrypto é fundada por dois herdeiros, Lucca Lucchesi e Mateus Gonçalves da Mota. Nenhum deles precisava trabalhar, mas ainda assim se dedicam ao projeto. Lucchesi, por acreditar sincera e fervorosamente na sua “missão espiritual ou política” (página 136); o hedonista Mota vai no embalo do amigo, e quer se provar diante da família. A empresa nunca decola, e suas alavancadas se mostram cada vez mais daninhas: logo depende de especulação e crime.
A sátira está nítida e funciona bem. Só que a história não nos convence do fervor de Lucchesi, por exemplo, porque ela o mantém a uma distância segura. Parece não querer se contaminar. Traçando um paralelo meio torto, é como se Policarpo Quaresma fosse apenas um saco de pancadas. Pancadas merecidas, sem dúvida, que garantem o riso. Mas há uma pungência — no mínimo, nos funcionários da LiveupCrypto, muitos deles adeptos dos mesmos discursos que fazem a cabeça de Lucchesi — que a ironia monocórdica sabota.
O próprio livro tem um contraexemplo: o conto-título, sem dúvida o ponto alto. Belinda é uma advogada corporativa, mulher negra que ascendeu por si. Um dia, num jantar na casa de amigos (ricos) do marido (rico), percebe que a animação a que sua filha está assistindo reproduz de modo literal um sonho seu, frequente durante o processo de fusão de dois conglomerados de mídia, tocado por Belinda. Ela chega até ao roteirista da série e não há explicação plausível para a coincidência. Melhor evitar spoilers, mas o final é digno de “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet (outro exemplo de sátira que também comove).
Aqui a história se permite aderir ao ponto de vista da personagem, baixando a guarda, abrindo espaço para quem lê tirar a própria interpretação. Isso poderia ser um problema na internet, nas redes sociais, com sua aversão à ambiguidade e à multiplicidade de sentidos. Mas não é na ficção. Muito pelo contrário. Nesse sentido, “O inconsciente corporativo” talvez aponte um caminho na busca pela elaboração literária da vida digital: qualquer forma que assuma — conto, romance ou outra coisa ainda —, ela terá que funcionar como literatura.
Henrique Balbi é escritor e professor de Literatura
‘O inconsciente corporativo e outros contos’. Autor: Vinícius Portella. Editora: DBA. Páginas: 216. Preço: R$ 59,90. Cotação: bom.