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Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro

Quando a escritora e tradutora Emanuela Siqueira recebeu o convite para fazer uma nova tradução de “Factótum”, romance de Charles Bukowski (1920-1994) que abre a reedição das obras do americano pela HarperCollins, viu-se com um desafio: enquanto feminista, precisaria trabalhar palavras de um escritor imortalizado como “velho safado”. No posfácio da recém-lançada edição, a escritora Clara Averbuck recorda seu mal-estar ao reler 20 anos depois o autor que marcou sua juventude — e explica por que é possível continuar a amá-lo, apesar de seus estereótipos raciais e passagens misóginas.

Para relançar no mundo pós-#metoo os 45 títulos do autor (um livro a cada mês), a editora investiu em um forte aparato anticancelamento, com notas que explicam “possíveis questões sensíveis”. Esse esforço de contextualização mostra como Bukowski se tornou espinhoso quase 20 anos após sua morte. Sua virulência em romances, poemas e ensaios, especialmente na representação de latinos, negros e, claro, mulheres, é vista com mais rigor.

E nem dá para “separar a vida da obra”, já que a personalidade do autor e seus livros são vistos como uma coisa só. A cena de um documentário em que o escritor agride sua ex-companheira Linda Lee em frente à câmera volta e meia ressurge nas redes, mobilizando detratores. E esses só crescem, a julgar pela oferta de artigos on-line como “O que ler Bukowski me ensinou sobre homens” e “Bukowski odiava mulheres?”.

O desafio da HarperCollins é provar que, mesmo à lupa das problematizações dos anos 2020, a obra de Bukowski ainda merece ser cultuada por sua rebeldia, acidez e humor.

— Talvez por ter sido uma referência em sua juventude, muita gente hoje tem vergonha de admitir que gostava de Bukowski — diz Alice Mello, editora-executiva da HarperCollins. — Por isso pensamos em trazer esse olhar renovado, que mostre por que ele é daquele jeito. É importante lembrar que seus personagens tratam as mulheres de uma forma que uma geração inteira tratou.

O “velho safado” não é o único a sofrer com novos valores morais e culturais. Em domínio público desde 2019, Monteiro Lobato ganhou da Companhia das Letras edições repletas de notas, em que especialistas contextualizam, em termos simples para os leitores infantis, por que passagens normais na época do autor seriam inaceitáveis hoje.

Onda de revisão

Outro exemplo mais radical aconteceu em março, quando correu a notícia de que romances de Agatha Christie tiveram trechos “potencialmente ofensivos” cortados ou alterados em novas edições da Harper Collins britânica. Livros de Roald Dahl e Ian Fleming também já passaram por revisões e tiveram trechos referentes a gênero e raça modificados.

No caso de Bukowski, a renovação se dá pelo “olhar feminino”, diz Alice Mello. Boa parte das traduções e textos complementares é assinada por mulheres — algo raro nas antigas edições, publicadas no Brasil pela L&PM e Brasiliense. O ranço atual com Bukowski, vale lembrar, não envolve apenas seus livros, mas todo um universo masculino que o autor representa — especialmente o fã homem que celebra seu estilo de vida e suaviza comportamentos tóxicos.

O medo de ficar com “pecha de machista” acabou afastando muitas leitoras em potencial, acredita Clara Averbuck. Mas ela afirma que é preciso dar “uma chance para o homem”.

— Bukowski foi bem mais do que o tal “velho safado” a quem o fandom de macho se apegou — diz a escritora. — Ele é fluxo, narrativa, sarcasmo, verdade. O mundo que ele retrata existia. Não se atira no mensageiro.

Linguagem da rua

Segundo romance de Bukowski, “Factótum” é um bom teste para o reposicionamento editorial do autor. Lançado em 1971, o livro traz temas que se tornariam recorrentes em sua obra: alcoolismo, prostitutas, empregos temporários e a desconstrução do sonho americano. O retrato do submundo é carregado de humor autodepreciativo, mas também de raiva e agressividade, tensões raciais e de gênero.

Logo no início, seu alter-ego Henry Chinaski surge andando pelo bairro afro-americano de uma nova cidade com uma mala de papelão “caindo aos pedaços”. Uma prostituta mestiça o agride ao chamá-lo de white trash (literalmente “lixo branco”), que na tradução de Emanuela Siqueira ficou como “branquelo de merda”. O narrador descreve a mulher como high yellow — expressão pejorativa para denominar uma pessoa birracial. Mas, como explica em uma nota, dessa vez a tradutora optou por algo “que não fosse racista em português brasileiro”: “negra de pele clara”.

— A linguagem dos personagens de Bukowski é a da rua, e daí entram as expressões misóginas e racistas, que tento trazer da forma mais próxima possível do original — diz Siqueira, cuja pesquisa de doutorado é focada em tradução sob a perspectiva feminista. — As misóginas são fáceis de resolver porque não faltam equivalentes em português. Mas as racistas são mais delicadas, acabam sendo muito fáceis de exagerar ou atenuar, por isso as notas.

Sexo 'broxante'

Outra marca de Bukowski, o conteúdo sexual também se revelou um desafio para a tradutora Emanuela Siqueira. A começar pelo amplo repertório para descrever o órgão sexual feminino. O mais simples seria padronizar tudo numa só expressão, mas Siqueira fez questão de se manter fiel à narração original, em que cada recorrência (“vagina”, “buceta”, “xoxota” etc.) varia conforme a mulher com quem ele se relaciona.

— Por construir uma estrutura narrativa de autocomiseração na voz do alter ego Chinaski, as cenas de sexo não são muito fáceis de traduzir —diz ela. — Não só porque não têm apelo visual, mas também porque são broxantes no discurso. Por outro lado, são engraçadas porque o narrador está vivendo a situação e sendo honesto sobre ela.

‘Liberdade como leitora’

Essa honestidade é dos aspectos de Bukowski mais atraentes para a escritora Nara Vidal, que assina o posfácio do livro de ensaios “Sobre escrever”, terceiro lançamento da coleção, previsto para setembro (antes, em agosto, a Harper publica o romance “Pulp”, com tradução de Carlos André Moreira).

Nara Vidal conta que recebeu com “alegria e surpresa” o convite para participar da edição

— Surpresa porque é, sim, lugar-comum dizer que Bukowski era machista e perpetuava aspectos e características associadas a um tipo de homem que teve, por tempo demais e em comparação com mulheres, vantagem e predileção no meio editorial — diz ela. — Em um tempo atento a discussões em torno da emancipação feminina, achei interessante poder contribuir com um ponto de vista que valoriza muito mais a minha liberdade como leitora do que qualquer preocupação com o teor machista do que ele escreveu.

Vidal vê como perigosa a tendência atual de se afastar de um autor por não concordar com os seus valores.

— Nos textos de Bukowski, gosto de acompanhar a irreverência, sagacidade, decadência e a miséria do escritor humilhado pelo mercado editorial, maltratado e sem dinheiro para a dignidade básica — diz. — Afinal, quantos dentes será que sobraram na boca de Bukowski? Acho que escritores ainda são assaltados pelo fantasma da rejeição, da irrelevância, da sarjeta.

Bukowski e as mulheres

“E, no entanto, mulheres — boas mulheres — me assustavam porque eventualmente querem a sua alma, e o que resta da minha, eu quero guardar”

“Quando uma mulher se volta contra você, pode esquecer. Mesmo que elas te amem, algo muda. Podem ver você morrendo na sarjeta, atropelado por um carro, e vão cuspir em você”

“Eu não sou bom com mulheres. Nunca fui. Para ser bom com as mulheres, você tem que ser bom de papo. Nunca fui bom nisso”

"Eu já tinha seguido tantas mulheres pela escada desse jeito, sempre pensando, se apenas uma mulher legal como essa se oferecesse para cuidar de mim, me alimentar com comida quente e gostosa, com meias e cuecas limpas para eu usar, eu aceitaria"

"Era uma infiel compulsiva — saía com qualquer um que conhecesse em um bar, e quanto mais baixo e sujo ele fosse, mais ela gostava. Ela sempre usava nossas brigas para se justificar. Eu continuava falando para mim mesmo que todas as mulheres do mundo não eram umas vagabundas, só a minha"

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