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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Em “Quem matou meu pai”, o escritor Édouard Louis denuncia vários políticos pelo crime, do ex-presidente Nicolas Sarkozy ao atual, Emmanuel Macron. O pai de Louis não morreu, mas teve de se afastar da fábrica após um peso cair em suas costas. Devido a cortes de benefícios sociais, precisou aceitar um emprego de varredor de rua antes de se recuperar, o que deteriorou ainda mais sua saúde. O livro mostra como a origem humilde do pai, suas noções de masculinidade e o descaso do Estado destruíram sua vida.

Trata-se de uma continuação do projeto literário de Louis, que retrata a vida dos marginalizados na França em romances autobiográficos, como “O fim de Eddy”, sobre a homofobia da cidade operária onde cresceu, e “A história da violência”, no qual revela ter sido estuprado por um imigrante árabe e denuncia o racismo francês, ambos publicados pela Planeta. “Quem matou meu pai” sai pela Todavia juntamente com “Lutas e metamorfoses e uma mulher”, dedicado à mãe, que, após décadas de privações e violência masculina, largou o marido para ser feliz em Paris.

Ao GLOBO, Louis diz desejar que seus livros forneçam uma linguagem que permita aos pobres falar de si mesmos, e apontou o culpado pelos protestos violentos que tomaram a França após o assassinato do jovem de origem argelina Nahel M. pela polícia:

— Macron devia pagar pessoalmente por todos os pontos de ônibus queimados.

Você decidiu escrever sobre seus pais após se perguntar quem seriam a Helena de Troia ou a Antígona dos nossos dias. O que a vida dos pobres tem a ver com a tragédia grega?

A tragédia grega fala sobre pessoas condenadas, que carregam o fardo de uma maldição que limita suas vidas. Quem seriam essas pessoas hoje? Os pobres. Quem os condenou não foram os deuses, mas a violência de classe. A tragédia grega também me ajudou a desafiar as regras não escritas que dizem que a literatura não deve ser muito explícita ou política. Se a literatura não é política, ela não fala dos pobres, porque eles não conseguem escapar da política.

Nas tragédias, quem desafia o destino se dá mal.

Sim. Mas acredito que dá para mudar as coisas coletivamente. Nos meus livros, tento reconstituir a complexidade das forças de dominação. Meu pai, um homem branco, hétero e forte, achava que tudo o que o destruía era decisão dele: beber demais, largar a escola cedo. Meu irmão era hétero e branco e morreu aos 38 anos de tanto beber. Já minha mãe, uma mulher, e eu, um gay, sabíamos que a violência masculina não era escolha nossa e por isso conseguimos nos emancipar.

Como noções de masculinidade impactam os mais pobres?

No meio onde cresci, a masculinidade era o valor mais importante. Ser homem era não ser feminino. Pierre Bourdieu (sociólogo francês) dizia que tiramos tudo dos pobres, menos seus corpos. Assim, é natural que surja uma ideologia que valoriza o corpo, a força, a masculinidade, que se torna a única arma que eles têm para resistir. No entanto, quanto mais usam a masculinidade para resistir, mais ela os destrói.

Seu pai não culpa mais os imigrantes e os gays pelos males da França. Seus livros são responsáveis pelas mudanças na vida dele?

Meus livros deram a meus pais um novo discurso para falar de si mesmos e de seus corpos. Como muitos trabalhadores, eles sempre procuraram uma linguagem que expressasse seu sofrimento, mas só a encontraram no discurso da extrema direita. É claro que existem pessoas racistas e homofóbicas, mas muitos eleitores da extrema direita só precisam de uma outra linguagem para falar como sofrem. Mas os progressistas não oferecem um contradiscurso forte o suficiente.

Como o contradiscurso dos seus livros afeta os leitores?

Pessoas sempre me abordam para dizer que sempre sonhavam em ser escritores ou acadêmicos, mas não conseguiram por conta de sua origem humilde. Há muita dor e violência aí. Se você é mulher ou gay, dependendo do lugar onde vive, pode ir às ruas e exigir mudanças. Mas como ir para as ruas dizendo “eu queria outra vida, mas a sociedade esmagou meus sonhos?” Quero que meus livros acolham essa melancolia que não encontra espaço político.

Você nomeia os políticos que “mataram” seu pai. Que tipo de vingança a literatura permite?

Uma vingança emancipatória quando dá visibilidade aos invisibilizados. Quem já foi pobre conhece o doce sentimento de vingança de se ver finalmente representado. Eu também já quis me vingar da homofobia dos meus pais. Quando mudei de cidade, comecei a ler Simone de Beauvoir e ver filmes de Almodóvar, pensava que ter acesso ao que os meus pais não tiveram era minha vingança. Hoje escrevo para vingá-los. Para mim, a literatura pode servir para absolver os dominados ao mostrar as forças sociais por trás de comportamentos individuais.

Você disse que a morte do jovem Nahel pedia não uma resposta emocional, mas política. Os protestos foram essa resposta? E a violência?

Políticos usam a emoção para despolitizar o que aconteceu. Dizem que é uma tragédia, que precisamos restabelecer a paz. Que paz? A França está em guerra permanente contra os negros e os árabes. A violência dos protestos não me agrada, mas entendo que ela é uma continuação daquela infligida pelo governo. O presidente Macron devia pagar pessoalmente por todos os pontos de ônibus queimados, porque ele tinha poder para mudar a situação, mas só pirou.

Serviço:

‘Quem matou meu pai’

Autor: Édouard Louis. Tradução: Marília Scalzo. Editora: Todavia. Páginas: 72. Preço: R$ 49,90.

‘Lutas e metamorfoses de uma mulher’

Autor: Édouard Louis. Tradução: Marília Scalzo. Editora: Todavia. Páginas: 112. Preço: R$ 54,50.

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