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Por Edward Pimenta, Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro

Mãe de dois filhos, a dinamarquesa Olga Ravn, de 36 anos, escreveu “Os funcionários” na volta de uma licença-maternidade que tirou entre 2017 e 2018. Trata-se de um pequeno artefato poético, ao mesmo tempo satírico e trágico, sem julgamentos morais, ensejando sofisticada reflexão sobre relações sociais, trabalho, exploração, jargão corporativo, capitalismo tardio, transumanismo e a relação entre seres humanos e tecnologia. Esta incomum narrativa, que figurou entre os finalistas do prestigioso International Booker Prize em 2021, acaba de ser lançada aqui.

A narrativa apresenta humanos e androides vivendo numa imensa nave espacial, em missão de reconhecimento de um novo planeta. Eles capturam objetos estranhos e os trazem para dentro da nave — a convivência com os objetos promove a degradação das relações na tripulação, produzindo queda da produtividade, pensamentos psicóticos, obsessões de todos os gêneros e desejos eróticos.

Estruturado em uma série de curtos depoimentos, o livro expõe as impressões dos tripulantes após a descoberta dos objetos, com relatos alternadamente sombrios e bem-humorados. É uma história sensorial, impregnada de aromas. A materialidade dos objetos faz com que os membros da tripulação queiram colocá-los na boca, como bebês aprendendo os limites do corpo.

Nesta entrevista ao GLOBO, via Zoom, Olga mostra sua “visão matriarcal de criar vidas” e conta como sua experiência com o mundo corporativo contribuiu para gerar essa ficção científica intrigante.

É correto chamar “Os funcionários” de romance? Parece um quebra-cabeças...

Tentei imaginar um romance como uma casa por dentro da qual se caminha, sentindo a ambiência, a arquitetura. No caso deste livro, a casa é uma imensa nave espacial, na qual vivem funcionários humanos e não humanos. Queria que o leitor descobrisse sozinho as vozes de uns e de outros.

E o que a levou a escrevê-lo?

Trabalhava no escritório de uma empresa o dia todo, digitando e-mails e mergulhada em jargão corporativo, que sempre achei uma linguagem absurda. Quis explorar o jargão num contexto literário para testar o que aconteceria se levássemos a sério a ideologia por trás dele, tentando entender que tipo de consciência surgiria se o mundo fosse realmente regido por ele.

Há uma imagem recorrente, a holografia de uma criança. Como essa imagem se conecta ao trabalho?

No livro só há trabalho, não há tempo livre. Todos na nave foram ensinados que isso é maravilhoso. Mas onde estaria o lugar dos sonhos e das paixões? Os hologramas que os funcionários recebem simbolizam isso. Antes de escrever o livro, tive meu primeiro filho e entrei em licença-maternidade. Foi uma experiência muito intensa. Quando voltei a trabalhar, tudo me pareceu grotesco. Estava voltando de um mundo suave e sensorial, e rapidamente percebi que no trabalho todos tinham uma expectativa de lealdade completa. Passei a considerar que, se meu filho ficasse doente, entraria em um conflito de lealdade. Então escrevi o livro enquanto estava trabalhando e, depois de entregá-lo à minha editora, pedi demissão do emprego. Além disso, percebi que só cuidei dos meus colegas o tempo todo, porque todo mundo ali estava mal. Não havia um verdadeiro senso de comunidade, a lealdade não era com o grupo, mas com algum tipo de chefe, hierarquia, instituição.

E esses funcionários da nave trabalham limpando objetos estranhos...

Os humanos e os humanoides convivem com esses objetos estranhos. Suas formas são inspiradas nas esculturas da dinamarquesa Lea Guldditte Hestelund, que me pediu que escrevesse os textos do catálogo de sua exposição, e estes escritos acabaram inspirando o livro. Há algo nas artes visuais que identifico como muito próximo da poesia.

O livro foi publicado na Dinamarca em 2018 e antecipa questões atuais sobre tecnologia. Como?

“Frankenstein”, de Mary Shelley, de 1818, é um livro de ficção científica sobre desconfiar da tecnologia, da eletricidade e de novas formas de criar vida. Se você estiver atento aos movimentos — e talvez eu tenha tido sorte — pode prever que teremos uma relação complicada com as ferramentas que criamos. Queria escrever uma história que se passasse distante da Terra, com humanos vivendo em uma nave espacial que, de repente, passassem a ver e sentir suas origens de maneira diferente. Assim é nossa relação com a tecnologia. Há milhares de anos fazemos ferramentas e aprendemos a usá-las. Elas podem nos ajudar a melhorar ou piorar nossa conexão com a natureza. Podem nos fazer sentir que somos os reis do mundo, mas não somos.

Alguma ferramenta de inteligência artificial será capaz de escrever um livro?

Não acho que estamos no caminho de criar um tipo de inteligência senciente. Vemos um rápido desenvolvimento de ferramentas, como quando a impressão de livros foi inventada. Se, no futuro, um ser surgisse disso, eu não teria medo. Isso remonta ao Frankenstein, à ideia de que se criarmos alguma vida senciente, ela nos destruiria. Essa é uma ideia patriarcal, até edipiana, de que o filho iria querer matar o pai. Claro, se uma inteligência artificial derivada de nós se tornasse senciente, teria nossa capacidade de violência, de mentir, manipular e todas essas coisas que estão na natureza humana. Mas ela também teria nossa gentileza, nosso amor, tolice, proteção, curiosidade. Essa é uma visão mais matriarcal de criar vida, certo?

E o que você pensa sobre colonizar outros planetas?

O anseio humano pelas estrelas é antigo. Se alguém muito rico conseguisse estabelecer a vida em outra parte do sistema solar, seria uma vida pobre que não valeria a pena ser vivida. Você usa a palavra “colonizar”, que fala de possuir e acumular riqueza. Eu diria que a colonização de um novo planeta seria uma extensão da colonização na Terra, com a mesma lógica, e há algo muito falso sobre colonizar porque sempre já tem alguém lá, pessoas ou outras formas de vida. É a velha noção do Antropoceno, de que a vida humana é central e mais importante e, portanto, deve sobreviver não importa o que aconteça. Centenas de pessoas muito ricas sobrevivendo em Marte, enquanto outras morrem na Terra, porque aquelas vidas são mais importantes do que, sei lá, toda a vida bacteriana do planeta. Amo a vida humana, mas não acho que seja a coisa mais importante (risos).

O que a levou à ficção científica?

O que me atraiu foi justamente o fato de que não é considerada alta literatura. Tentei escrever romance realista com retratos psicológicos dos personagens e o resultado sempre era apenas má escrita. Então descobri a ficção científica, li romances e assisti a muitos filmes de terror, as coisas mais kitsch que você pode imaginar. Esse é o meu lugar, estou na periferia do cânone, encontrei um tipo de literatura que inventa as coisas, que usa a imaginação.

“Os funcionários”. Autora: Olga Ravn. Tradutor: Leonardo Pinto Silva. Editora: Todavia. Páginas: 136. Preço: R$ 64,90.

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