Livros
PUBLICIDADE

Por Paula Sperb, Especial Para O GLOBO — Rio de Janeiro

Diante de uma invenção que possibilita viajar no tempo, duas amigas discutem se a direção que devem tomar é o futuro ou o passado. “Rapidamente, concluímos ser o futuro o único sentido possível”, conta Paula, uma estudante de Letras de 24 anos. A amiga Marcela, pesquisadora no Instituto de Física de uma universidade federal, explica: “Melhor assim, duas mulheres pretas no passado não têm como dar bom”.

O trecho serve como síntese do novo romance da gaúcha Taiasmin Ohnmacht, “Uma chance de continuarmos assim”. Paula, que narra a história em primeira pessoa, conclui que viajar para o passado seria um privilégio de brancos porque, para negros, “seria um risco enorme”.

O livro é uma ficção que explora os possíveis resultados catastróficos de experimentos genéticos no futuro, as perspectivas de uma tecnologia baseada na natureza e uma reorganização da Terra e do espaço.

A aproximação do romance de Ohnmacht com a obra da americana Octavia E. Butler (1947-2006) fica evidente conforme o enredo avança. Butler, uma mulher negra, foi uma mestra da ficção científica, gênero predominantemente masculino e branco. Ela é referenciada nominalmente na voz da narradora Paula, que lê seus livros e cita a personagem Lilith, da trilogia “Xenogênese”. Lilith fica adormecida após a devastação da Terra e acorda em um futuro em que humanos interagem com seres de outros planetas.

Paula também adormece e acorda inúmeras vezes. Sua narração dá conta de exprimir seu estranhamento nessas situações e a tentativa de tentar entender o que está acontecendo, tal qual Gregor Samsa, personagem da “Metamorfose”, de Franz Kafka. O conforto aparece apenas quando se percebe em casa, escutando a voz de sua mãe. Essa sensação de proteção maternal aparece também em “Ritos de passagem”, o segundo volume da trilogia de Butler, quando um bebê híbrido é amamentado por Lilith.

Lacunas na memória

Inicialmente, o leitor sabe que Paula alterna o ambiente doméstico com um lugar no futuro a partir de detalhes descritos, como trajes tecnológicos, aparatos de vidro, pessoas tão brancas que parecem doentes e uma claridade ofuscante que quase cega seus olhos. O bebê híbrido hiperinteligente de Butler também tem a visão afetada por um clarão ao nascer. O diálogo entre as obras é um deleite para os admiradores de Butler, mas Ohnmacht tem voz própria que merece ser ouvida.

Descobre-se que Paula realizou com sucesso uma viagem para o futuro no aparato desenvolvido por Marcela. Sua memória, porém, está cheia de lacunas que ao longo do romance ela procura preencher. É como uma metáfora para a memória roubada dos povos africanos quando sequestrados e trazidos para o Brasil.

Não por acaso, o dispositivo é apelidado pelas estudantes como Sankofa, um ideograma adinkra, com origem em Gana, simbolizado por um pássaro com a cabeça voltada à cauda. A ideia do desenho é “para haver futuro é necessário existir o passado”, como explica um personagem.

Ao revelar as armadilhas do racismo — que colocam pessoas pretas em perigo não só no passado, como imaginavam as personagens, mas também no futuro — a autora consegue fazer do racismo estrutural um tema para a literatura de ficção especulativa. Ohnmacht comanda os elementos do romance tal qual o diretor Jordan Peele faz no cinema com seus filmes de horror: o racismo sistêmico prende negros em situações kafkianas muitas vezes aterrorizantes.

O leitor não deve esperar uma aula sobre racismo, não se trata disso. Trata-se de literatura contemporânea da melhor qualidade, tal qual Ohnmacht já demonstrou no ótimo “Vozes de retratos íntimos” (Taverna, 2021), finalista dos prêmios São Paulo e Jabuti. No seu romance anterior, ela conta a história de uma família de ascendência afro-brasileira, indígena e alemã e a construção de uma identidade.

Em “Uma chance de continuarmos assim”, a narração de Paula é interrompida por uma segunda voz que assume o romance nos capítulos finais e indica: apesar de tudo, há esperança no futuro.

Paula Sperb é jornalista e crítica literária, com pós-doutorado em Letras na UFRGS

‘Uma chance de continuarmos assim’.

Autora: Taiasmin Ohnmacht. Editora: Diadorim. Páginas: 256. Preço: R$ 62,40. Cotação: ótimo.

Mais recente Próxima Resenha: 'Sim', de Thomas Bernhard, suga o leitor para o interior da mentalidade do narrador
Mais do Globo

Autoridades russas criticaram política do COI, que decidiu permitir que alguns atletas do país participassem sob bandeira neutra, desde que cumpram condições rigorosas

Lutadores russos rejeitam convite para os Jogos de Paris sob bandeira neutra

Ex-presidente Jair Bolsonaro é quem mais afasta eleitores, diz pesquisa

Datafolha aponta que 56% podem mudar voto para prefeitura de SP por rejeição a padrinho político

Casal teria retomado acordo milionário com serviço de streaming pra realizar novo documentário sobre realeza britânica

'Em pânico': família real teme novo projeto de príncipe Harry e Meghan Markle, diz site; entenda

Idade avançada continua sendo motivo de preocupação para seus colegas exilados, que temem que Pequim nomeie um sucessor rival para reforçar seu controle sobre o Tibete

Dalai Lama diz que está em bom estado de saúde após cirurgia nos Estados Unidos

Mikel Merino deu a volta na bandeira de escanteio para homenagear o genitor após selar a vitória espanhola na prorrogação

Pai de 'herói' da Espanha na Eurocopa marcou gol decisivo contra alemães no mesmo estádio há 32 anos; compare

O craque aproveitou para agradecer pelo apoio da torcida

Cristiano Ronaldo faz publicação nas redes sociais após eliminação de Portugal na Eurocopa: 'Merecíamos mais'

Com os criminosos foram apreendidos drogas, dinheiro, máquina de cartão de crédito e diversos celulares roubados

Polícia Civil prende em flagrante três homens por tráfico e desarticula ponto de venda de drogas no Centro

Sem citar caso das joias, ex-presidente citou ‘questões que atrapalham’ e criticou a imprensa

Após indiciamento por joias, Bolsonaro é aplaudido em evento conservador ao dizer estar pronto para ser sabatinado sobre qualquer assunto

Embora Masoud Pezeshkian tenha sido eleito com a defesa do diálogo com nações ocidentais, decisões sobre política externa ou nuclear permanecem sob aiatolá Ali Khamenei

Vitória de candidato moderado no Irã pode aliviar, mas tensões nucleares não vão acabar, dizem analistas