Diante de uma invenção que possibilita viajar no tempo, duas amigas discutem se a direção que devem tomar é o futuro ou o passado. “Rapidamente, concluímos ser o futuro o único sentido possível”, conta Paula, uma estudante de Letras de 24 anos. A amiga Marcela, pesquisadora no Instituto de Física de uma universidade federal, explica: “Melhor assim, duas mulheres pretas no passado não têm como dar bom”.
- Lenda da canção americana: morre Tony Bennett, aos 96 anos, em Nova York
- 'Oppenheimer': elenco se derrete por Christopher Nolan: 'Ele mudou a minha vida', diz Cillian Murphy
O trecho serve como síntese do novo romance da gaúcha Taiasmin Ohnmacht, “Uma chance de continuarmos assim”. Paula, que narra a história em primeira pessoa, conclui que viajar para o passado seria um privilégio de brancos porque, para negros, “seria um risco enorme”.
O livro é uma ficção que explora os possíveis resultados catastróficos de experimentos genéticos no futuro, as perspectivas de uma tecnologia baseada na natureza e uma reorganização da Terra e do espaço.
A aproximação do romance de Ohnmacht com a obra da americana Octavia E. Butler (1947-2006) fica evidente conforme o enredo avança. Butler, uma mulher negra, foi uma mestra da ficção científica, gênero predominantemente masculino e branco. Ela é referenciada nominalmente na voz da narradora Paula, que lê seus livros e cita a personagem Lilith, da trilogia “Xenogênese”. Lilith fica adormecida após a devastação da Terra e acorda em um futuro em que humanos interagem com seres de outros planetas.
Paula também adormece e acorda inúmeras vezes. Sua narração dá conta de exprimir seu estranhamento nessas situações e a tentativa de tentar entender o que está acontecendo, tal qual Gregor Samsa, personagem da “Metamorfose”, de Franz Kafka. O conforto aparece apenas quando se percebe em casa, escutando a voz de sua mãe. Essa sensação de proteção maternal aparece também em “Ritos de passagem”, o segundo volume da trilogia de Butler, quando um bebê híbrido é amamentado por Lilith.
Lacunas na memória
Inicialmente, o leitor sabe que Paula alterna o ambiente doméstico com um lugar no futuro a partir de detalhes descritos, como trajes tecnológicos, aparatos de vidro, pessoas tão brancas que parecem doentes e uma claridade ofuscante que quase cega seus olhos. O bebê híbrido hiperinteligente de Butler também tem a visão afetada por um clarão ao nascer. O diálogo entre as obras é um deleite para os admiradores de Butler, mas Ohnmacht tem voz própria que merece ser ouvida.
Descobre-se que Paula realizou com sucesso uma viagem para o futuro no aparato desenvolvido por Marcela. Sua memória, porém, está cheia de lacunas que ao longo do romance ela procura preencher. É como uma metáfora para a memória roubada dos povos africanos quando sequestrados e trazidos para o Brasil.
Não por acaso, o dispositivo é apelidado pelas estudantes como Sankofa, um ideograma adinkra, com origem em Gana, simbolizado por um pássaro com a cabeça voltada à cauda. A ideia do desenho é “para haver futuro é necessário existir o passado”, como explica um personagem.
Ao revelar as armadilhas do racismo — que colocam pessoas pretas em perigo não só no passado, como imaginavam as personagens, mas também no futuro — a autora consegue fazer do racismo estrutural um tema para a literatura de ficção especulativa. Ohnmacht comanda os elementos do romance tal qual o diretor Jordan Peele faz no cinema com seus filmes de horror: o racismo sistêmico prende negros em situações kafkianas muitas vezes aterrorizantes.
O leitor não deve esperar uma aula sobre racismo, não se trata disso. Trata-se de literatura contemporânea da melhor qualidade, tal qual Ohnmacht já demonstrou no ótimo “Vozes de retratos íntimos” (Taverna, 2021), finalista dos prêmios São Paulo e Jabuti. No seu romance anterior, ela conta a história de uma família de ascendência afro-brasileira, indígena e alemã e a construção de uma identidade.
Em “Uma chance de continuarmos assim”, a narração de Paula é interrompida por uma segunda voz que assume o romance nos capítulos finais e indica: apesar de tudo, há esperança no futuro.
Paula Sperb é jornalista e crítica literária, com pós-doutorado em Letras na UFRGS
‘Uma chance de continuarmos assim’.
Autora: Taiasmin Ohnmacht. Editora: Diadorim. Páginas: 256. Preço: R$ 62,40. Cotação: ótimo.