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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e um dos mais respeitados estudiosos da comunicação no país, Eugênio Bucci lança seu novo livro, “Incerteza, um ensaio”, com um pé no passado e outro no presente. Volta aos primórdios da cibernética para mostrar como a possibilidade de quantificar incerteza e informação permitiu avanços das tecnologias digitais. De volta ao contemporâneo, explica por que o declínio da democracia está associado à emergência de tecnologias digitais que sabem tudo sobre nós mas são inacessíveis até mesmo ao Estado.

Em entrevista ao GLOBO, Bucci rebate a tese de que as tecnologias seriam ideologicamente neutras e defende que um dos ganhos da modernidade é o aumento da incerteza.

— A única certeza absoluta é a morte. A vida é gostar da dúvida — afirma.

Você afirma que “nosso apego à numeralha” tem elementos de uma “religião digital”. O que caracteriza essa religião? Ela tem pecado? Sacerdote?

Sempre existiu um fetiche em torno da tecnologia, um encanto. A aura de exclusividade de algumas mercadorias contribui para sua divinização, transformação em objeto anímico, em amuleto. Uso a religião como uma metáfora. Contrariar a tecnologia é uma espécie de heresia. Quando critico não a técnica em si, mas as teias de propriedade que a envolvem e as consequências graves disso para o debate público, sou recebido como um herege. Desafiar as maravilhas tecnológicas parece pecado, uma defesa do passado, querer que a roda gire para trás. É só ver o entusiasmo dos profetas da religião digital, gente como Steve Jobs (1955-2011) e Nicholas Negroponte, que disse que o mundo dos átomos se transformou no mundo dos bits.

O livro rebate o discurso de que as tecnologias digitais seriam ideologicamente neutras. Por quê?

Toda tecnologia já vem com uma ideologia embutida, a despeito de quem a programou. Existe a presunção de que o emprego das tecnologias digitais pode ser neutro, mas duvido que alguém acredite seriamente nisso. Quando perdemos de vista que a máquina realiza uma ideologia, perdemos o melhor e o pior da história. A máquina fotográfica, por exemplo, automatizou um modo de olhar construído e socialmente aceito antes dela. É o prolongamento da câmara obscura dos pintores, de uma visão ideológica que carregava determinada ideia de objetividade, de perspectiva. A ideia de comunicação como recepção perfeita de uma mensagem emitida por outro polo, essencial para o desenvolvimento da cibernética, também é ideológica. Por que uma mensagem que chega intacta é mais confiável? A ideologia das tecnologias digitais é binária. Os dígitos só podem ser 0 ou 1, embora outras possibilidades possam ser traduzidas nessa linguagem. Mas isso tem efeitos no modo como pensamos. Isso supõe a eleição de certos valores em detrimento de outros, não é um dado da natureza.

Essa ideologia das tecnologias digitais torna mais urgente a regulação das plataformas?

A regulação é urgente porque o declínio da democracia está associado ao uso intencional dessas tecnologias para desinformar. Estamos acostumados a dizer que informação é poder, mas temos que acordar para o fato de que desinformação fabricada industrialmente também é poder. Porque a mediação do debate público, a decisão sobre quais argumentos vão fluir e com que alcance, ficou a cargo de ferramentas que estão fora do controle do Estado de Direito. Quem medeia o debate público tem de estar sob o escrutínio do debate público. A mediação da democracia foi sequestrada pelos detentores das tecnologias digitais. Os algoritmos são desenvolvidos por meio de pesquisas que não são transparentes, por pessoas que não prestam contas e em ambientes inacessíveis ao controle democrático. Todos os mercados são regulados. Por que o mercado das tecnologias, que move mais dinheiro do que muitos estados, tem que ficar protegido em um bunker?

Por que é importante compreender como essas plataformas funcionam?

Porque há aí uma relação de poder. As tecnologias digitais estão a serviço de grandes conglomerados e são opacas para nós. Mas nossas vidas se tornaram transparentes para elas. Quem é que tem acesso aos nossos dados? Quanto eles valem? De que modo podem ser empregados em estratégias de manipulação política? Não sabemos direito, só podemos inferir. Isso configura uma sociedade de vigilância. É como nos regimes totalitários, nos quais o poder pode a qualquer momento entrar na intimidade do cidadão sem autorização. Vivemos em um regime tecnológico que tem aspectos de totalitarismo.

Quais seriam esses aspectos?

Um deles é a transparência das vidas dos cidadãos enquanto o poder que nos vigia é opaco até mesmo para o Estado Democrático de Direito. Outro aspecto totalitário é a adesão festiva, religiosa, histérica, das massas às ferramentas digitais. Elas não precisam desenvolver esforços consideráveis para chegar na intimidade das pessoas, que passam a encenar sua intimidade, que se tornam desconhecida para eles mesmos. Há uma assimetria da incerteza. Os centros tecnológicos sabem tudo sobre mim, e eu não sei nada sobre eles. A democracia precisa enfrentar essa má distribuição de incerteza.

Mas você diz que a incerteza é boa para a democracia.

A modernidade gera incerteza, e isso é libertador. Na Idade Média, a vida de uma pessoa já estava escrita no nascimento. O futuro reservava pouca margem para a incerteza, a surpresa. Na política de Aristóteles, quem vai governar e quem vai ser governado é uma questão que seria resolvida no nascimento. A modernidade traz a ideia difusa de que todos são agentes políticos e elimina várias predeterminações. O que uma pessoa vai fazer da vida é incerto. E isso é positivo, é liberdade. Há não muito tempo, não existia a possibilidade de uma pessoa escolher sua religião. Hoje, posso acordar e decidir ser budista. Quanto mais incerteza, mais a aventura da vida se torna interessante. A única certeza absoluta é a morte. A vida é gostar da dúvida. Não é 0 ou 1. Não é ser ou não ser. É ser e não ser.

Serviço:

"Incerteza, um ensaio".

Autor: Eugênio Bucci. Editora: Autêntica. Páginas: 136. Preço: R$ 37,90.

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