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Por Bolívar Torres — Rio de Janeiro

Em seu discurso de agradecimento ao Nobel de Literatura, em 2014, Patrick Modiano repetiu oito vezes a palavra “infância”. Como ele mesmo contou, alguns episódios nesse período formaram a matriz de sua futura obra. E, de fato, o pequeno Modiano testemunhou coisas bem estranhas. Durante dois anos, foi confiado por seus pais a amigos criminosos que se escondiam nos arredores de Paris.

Somente em sua vida adulta, contudo, o escritor percebeu a natureza enigmática de sua meninice, revisitando-a em obras como “Remissão de pena” (1991) e “L’horizon” (de 2010, nunca editado por aqui). Em seu mais recente lançamento no Brasil, “Cena de um crime”, ele volta a abordar os eventos traumáticos da infância, mas de forma muito mais frontal do que em livros anteriores. Quando foi lançado na França, em 2021, a imprensa local chegou a especular se este não seria o título de despedida do cultuado escritor, visto que não sobraria mais nada a dizer depois dele (ledo engano: o próximo, “La danseuse”, está previsto para outubro deste ano).

“Cena de um crime” é mais um romance “semiautobiográfico” com o personagem Jean Bosmans, uma sombra do próprio Modiano — e tão obsessivo quanto ele. Para quem leu “Remissão de pena”, é a criança de 10 anos que, como o escritor, foi deixada aos cuidados de três amigas dos seus pais em uma cidadezinha perto de Paris. O livro de 1988 traz mais perguntas do que respostas sobre o episódio, que é evocado pelo olhar inocente de um menino. Junto com o seu irmão, o pequeno Modiano/Bosmans absorve o clima tenso da casa em que se abriga, sem nunca, entretanto, decifrar aquele entre e sai suspeito. Paira no ar uma desgraça iminente, confirmada com a fuga das suas improváveis tutoras ao final do relato. Descobre-se que algo “muito grave” aconteceu, mas sem mais detalhes.

Em “Cena de um crime”, Modiano nos ensina, mais uma vez, que os fantasmas do passado seguem em nossa cola como agiotas. Eles continuam a assombrar um Jean Bosmans já adulto e solitário. Como um cachorro girando em torno do próprio rabo (a imagem também poderia resumir todo o projeto literário de Modiano), ele refaz um circuito geográfico e metafísico que abrange o Vale de Chevreuse, um marco de sua juventude, e uma casa na Rua Docteur Kurzenne, um local traumático da sua infância.

O protagonista evoca um mapa defasado, repleto de pequenas estradas e vilarejos que se evaporaram no tempo (todos carregamos em nós mesmos o mapa perdido de alguma cidade que esquecemos, já disse o escritor). Guiado por lembranças dormentes, ele refaz os passos de sua juventude décadas atrás. Em 1966, Bosmans cruza por uma galeria de personagens duvidosos. Um deles, René-Marco, opera uma rede telefônica feita de linhas abandonadas, recebendo à noite a visita de homens e mulheres em seu apartamento em Autueil.

O herói tenta encontrar uma ligação esses eventos de sua juventude e os de sua infância. Mas, com a distância, essas duas fases da vida acabam se superpondo em sua memória, como um livro dentro do livro.

A própria enciclopédia

Percebe-se, então, por que a mirada no abismo é o artifício favorito de Modiano. Aqui, porém, ele leva o procedimento ao limite. Nunca um de seus livros fez tantos links com os anteriores, ecoando nomes, endereços e episódios recorrentes em sua obra. É quase uma Wikipedia de si mesmo.

Quando Modiano menciona uma Camille Lucas, conhecida como “Caveira”, difícil não ver a Louki de “Nos cafés da juventude perdida”. E Guy Vincent, seria o mesmo de “Des inconnues”? Não importa, no fim, se o leitor será capaz de fazer todas as conexões. Embalado pela inconfundível dicção modianesca (uma música ao mesmo tempo doce, etérea e cativante, verdadeira canção de ninar para sonâmbulos), ele se perderá com gosto no labirinto autorreferencial do escritor, sabendo de antemão que não chegará a lugar algum.

Modiano é como aquele mágico que repete sempre o mesmo truque — e ainda assim nunca perde a graça. A novidade, aqui, não são os já manjados zigue-zagues e espirais, mas o palimpsesto. Ao sugerir que uma nova narrativa nascerá ao fim desta última, o autor nunca esteve tão próximo de Proust e da estrutura circular de “Em busca do tempo perdido”. Em vez de uma nova camada, ele propõe um recomeço, uma volta ao ponto de partida. Seja como for, já estamos, como sempre, prontos para o próximo labirinto.

‘Cena de um crime’. Autor: Patrick Modiano. Tradutor: Ivone Benedetti. Editora: Record. Páginas: 176. Preço: R$ 59,90. Cotação: ótimo.

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