O Ministério da Cultura convidou servidoras públicas para compor o júri do Prêmio Carolina Maria de Jesus sem receber nenhuma remuneração. O GLOBO teve acesso ao e-mail enviado às servidoras, que são professoras universitárias ou têm ligação com o meio editorial. A mensagem explicava que as juradas deveriam avaliar cerca de 50 obras (cada uma com no mínimo 49 páginas) entre os dias 27/7 e 9/9. Servidoras ouvidas pela reportagem acusaram o MinC de desvalorizar o trabalho intelectual e expressaram preocupação com modo como o concurso avaliará as obras literárias inscritas.
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Lançado em 5 de abril, o Prêmio Carolina Maria de Jesus vai conceder R$ 50 mil a 40 obras inéditas de diversos gêneros literários (conto, crônica, poesia, história em quadrinhos, romance, dramaturgia). Das autoras premiadas, 20% (8) deverão ser negras, 10% (4) indígenas, 10% (4) pessoas com deficiência, 5% (2) ciganas e 5% (2) quilombolas.
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Cristiane Brasileiro disse que a falta de remuneração desqualifica o júri e compromete o prêmio.
— Quem é que vai aceitar trabalhar nessas condições e sem receber nada? Talvez professoras universitárias aposentadas, que têm tempo e não vão precisar passar noites em claro lendo. Ou pessoas menos qualificadas que topem só para colocar no currículo. Quem está participando do prêmio merece saber que a avaliação será comprometida — afirmou Cristiane, que vê “sexismo” na situação. — É chocante que isso esteja ocorrendo em um prêmio voltado às mulheres.
Ministério se justifica
Questionado pelo GLOBO, o Ministério da Cultura respondeu por meio de sua assessoria de imprensa. Inicialmente, a pasta previa a remuneração de uma Comissão de Avaliação formada por seis juradas, número insuficiente diante da quantidade de inscrições recebidas: 2.619, das quais 1.812 foram habilitadas. Para expandir o júri, optou por convocar servidoras para atuar voluntariamente, o que está previsto no decreto n.º 11.453/2023.
Segundo o MinC, 50 servidoras já aceitaram o convite e o número de obras a serem avaliadas e os prazos serão revistos. O ministério também assegurou que o júri voluntário é uma “saída circunstancial” e que “este não será o procedimento padrão”. “É fundamental valorizar e retribuir devidamente os trabalhadores e trabalhadoras da cultura”, afirmou.
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Uma servidora que preferiu não se identificar disse ao GLOBO a convocação atabalhoada de juradas voluntárias e a incapacidade do MinC de prever um número tão alto de inscrições expõem inconsistências de um concurso que, embora bem-intencionado, foi feito às pressas, para ser lançado ainda nos 100 primeiros dias do governo. Ela concorda que a fragilidade do júri poderá prejudicar as autoras.
— Vejo três cenários possíveis. No primeiro, tudo dá certo e são premiadas 40 obras de fato muito boas. No segundo, por conta dos problemas do júri, premiam-se obras questionáveis, que, em vez de enaltecer a autoria feminina, podem fragilizá-la ainda mais. No terceiro, apesar das cotas, acaba-se premiando autoras já estabelecidas e publicadas por grandes casas editoriais, o que também vai contra as intenções de um prêmio como esse — afirmou. — Esse edital parece ter sido feito sem base em estudos sobre a escrita no Brasil.
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Também reservadamente, outra servidora disse que a falta de remuneração do júri expressa “desprezo pelo processo de avaliação”.
— Você acha que já passou pela cabeça de alguém no Ministério da Fazenda pedir uma consultoria gratuita para alguém? Isso só existe na cultura, porque o trabalho intelectual é extremamente desvalorizado — criticou.
Ela também afirmou que os profissionais da literatura têm evitado fazer críticas públicas ao prêmio, pois reconhecem o esforço do governo de reestruturar a política cultural após o desmonte bolsonarista. Embora elogie o MinC por favorecer grupos historicamente marginalizados, ela afirma que as cotas estabelecidas pelo edital são desproporcionais e não levam em conta a realidade da produção literária de mulheres não brancas no país.
Das 1.812 habilitadas, 360 foram escritas por mulheres negras, 39 por PCDs, seis por quilombolas, quatro por indígenas e nenhuma por ciganas, informou o ministério. Segundo um texto publicado no site da Cultura, o diretor de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do MinC, Jeférson Assumção, acredita que esses números apontam para “uma possível dificuldade de acesso aos editais e suas formalidades por parte das candidaturas com direito a cotas”.