Já virou clichê dizer que a obra de George Orwell, autor de “A revolução dos bichos” e “1984”, continua absurdamente atual. Mas veja só o que ele afirma no ensaio “Livros e cigarros”, de 1946: “Esta ideia de que comprar ou simplesmente ler livros é uma atividade cara e além do alcance de uma pessoa comum é tão difundida que merece ser examinada com mais atenção”. Não parece saído do debate sobre o preço do livro, reacendido pelo influencer Felipe Neto?
Textos como este voltam a circular em “Na livraria com Orwell”, reunião de ensaios publicados entre 1936 e 1946 em que o britânico examina questões que seguem na ordem do dia. Além do preço do livro, o autor aborda a sobrevivência das livrarias, o papel da crítica literária e a censura.
Organizado e traduzido por Gisele Eberspächer e editado pela Livraria Gráfica (projeto da editora Lote 42 e da Casa Rex), o livro inclui textos conhecidos do autor, como “A política e a língua inglesa” e “Por que eu escrevo”, e não será vendido em lojas. É preciso encomendá-lo no site da Livraria Gráfica até dia 20.
Já vimos esse filme
Em “Livros e cigarros”, o escritor lembra a conversa de um amigo seu com trabalhadores que reclamavam do preço dos livros. E se põe a fazer cálculos. Após um levantamento doméstico, o leitor voraz conclui que, em um ano, gastava com livros, revistas e jornais 60% do que um britânico médio investia em fumo e álcool.
Escrevendo em 1946, Orwell afirmou que o preço médio do livro no Reino Unido era o mesmo de um ingresso para o cinema. Mas um filme raramente passa de três horas, enquanto um livro não só demora mais para ser lido, como pode ser relido, emprestado, vendido para um sebo ou enriquecer uma biblioteca. “A leitura é um dos entretenimentos mais baratos”, escreve Orwell. “Se o nosso consumo de livros permanecer tão baixo, podemos ao menos admitir que é porque ler seja um passatempo menos excitante do que ir em corridas de cães, ao cinema ou ao pub, e não porque os livros sejam muito caros”.
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Orwell escreveu “Livros e cigarros” sob o impacto do desarranjo econômico causado pela Segunda Guerra Mundial. A realidade atual não é tão diferente. A pandemia e o conflito na Ucrânia pressionaram as cadeias de abastecimento, o que impactou diretamente a produção de papel e, em consequência, o preço do livro. No Brasil, o preço médio do livro aumentou 7,75% nos últimos 12 meses e alcançou R$ 42,62 em julho, de acordo com o Painel do Varejo de Livros, realizada pela Nielsen Book e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livro.
Não à toa, editores e livreiros invocam exemplos usados por Orwell (o preço da cerveja, do ingresso do cinema) para argumentar que o livro não está tão caro assim, pois passou anos subindo menos do que a inflação.
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A última edição da pesquisa Retratos da Leitura, de 2020, apontou que o que mais afastava o público do livro não era o preço, mas o desinteresse. As desculpas mais comuns para não ler eram a falta de tempo (47%) e de paciência (9%), a preferência por outras atividades (9%) e o cansaço (7%). Os que reclamaram do preço foram 7%. Outros 5% alegaram falta de dinheiro.
— Não reajustar o preço do livro afundou o mercado editorial brasileiro. E as livrarias foram as mais prejudicadas, porque o preço de capa não subiu, mas custos com aluguéis e salários continuaram subindo — diz João Varella, editor da Lote 42. — O problema não é só o preço, mas também a desvalorização do livro no Brasil.
Dura vida entre letras
Orwell discute a sobrevivência do varejo do livro em outro texto da coletânea, “Memórias de livraria”. Envereda ainda por outros dilemas, como o valor da literatura de entretenimento (“Bons livros ruins”) e a vida dura dos resenhistas (“Confissões de um crítico literário”). Descreve o “trabalho excepcionalmente ingrato, irritante e exaustivo” de quem vive de “inventar constantemente reações em relação a livros pelos quais não tiveram nenhum sentimento espontâneo”. As conclusões de Orwell sobre a vida dessa “criatura desanimada e nervosa” se aplicam a todos os que tiram seu sustento das palavras: escritores, roteiristas, tradutores, repórteres.
Segundo Gisele Eberspächer, organizadora e tradutora do volume, a vida dessa “criatura” é ainda pior se ela for do sexo feminino. Mulheres que vivem do trabalho intelectual penam mais que os homens para terem “suas vozes legitimadas”, diz ela. Gisele mantém um canal de resenhas literárias no YouTube, onde enfrenta dilemas que nem Orwell foi capaz de prever.
— Há uma pressão para entrar no jogo dos algoritmos e apostar em conteúdo pop para ganhar visualizações. Por exemplo: fazer vídeos indicando 10 livros sobre tal assunto ou falar do livro de que todo mundo está falando. Isso dá uma certa ansiedade. E o resultado é que o que era para ser um conteúdo de nicho acaba ficando igual ao de todo mundo — explica. — Já cansei de brigar com algoritmo. Tento falar do que eu gosto, mesmo que isso não renda tanto engajamento. É melhor uma resenha empolgada do que uma resenha para bater meta.
Se serve de consolo, Orwell afirma que há quem esteja “em situação pior” que o crítico literário: o crítico de cinema, que não pode trabalhar de casa, e ainda precisa acordar cedo para assistir às exibições para imprensa. Pois é, Orwell antecipou até os benefícios do trabalho remoto.
Serviço:
‘Na livraria com Orwell’
Autor: George Orwell. Tradutora e organizadora: Gisele Eberspächer. Editora: Livraria Gráfica. Páginas: 64. Preço: R$ 60.