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Por Eduardo Graça — São Paulo

Em 2021, quando conversou com o GLOBO de Maputo, ao lançar “O mapeador de ausências”, romance calcado em memórias de sua família e na construção de Moçambique pós-colonial, Mia Couto refletiu sobre o Brasil que encontrara dois anos antes. No início do governo Bolsonaro, se deparara com um país “que parecia não ter razão para sambar”. Constatou que “o Brasil faz muita falta” e anunciou o desejo de retornar ao país após a pandemia e o de encontrá-lo “menos polarizado, comprometido com a democracia”.

Pois o vencedor do Prêmio Camões 2013 está de volta, com “As pequenas doenças da eternidade” debaixo do braço, que está sendo lançado aqui. Mia foi um dos destaques este mês da Festa Literária Internacional do Pelourinho, em Salvador, e da Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto. Também passou por São Paulo, onde conversou com pares e leitores.

— Senti, sim, o país diferente. Mas nenhum governo é capaz de fazer apenas o que quer — pondera.

Na noite de 30 de outubro, Mia estava em Lisboa, “de olho no noticiário”, quando se confirmou a vitória de Lula. Participou das celebrações e se recorda com precisão do que disse a amigos brasileiros na ocasião:

— Sem grande sapiência, mas oriundo da experiência pessoal, de quando colocamos o sonho no pódio em Moçambique, em nossa Independência, em 1975, e iríamos resolver todos os problemas, ressaltei que a realidade é repleta de pequenas doenças da eternidade. Algumas delas, teimosamente antigas — diz.

“As pequenas doenças da eternidade” é o sexto de 27 contos originalmente publicados na revista semanal portuguesa Visão. Em Moçambique, terra natal do escritor, e em Portugal, o livro lançado em novembro de 2021 se chama “O caçador de elefantes invisíveis”, título de uma das narrativas centradas na Covid-19. Mia e editores fizeram a alteração para o Brasil ao perceberem que as histórias tratavam do “novo mundo desvelado pela pandemia”, em que solidão, sofrimento, violência contra as mulheres, exclusão e racismo haviam sido redimensionados.

O conto que batiza o livro no Brasil gira em torno da tragédia de uma mulher, contada a partir do ponto de vista de um menino, melhor amigo do filho dela. “A costureira espreitava pela janela, mas não eram nuvens que ela queria ver. Esperava pela chegada do marido. Sabia que o homem a estava a trair com outra, algures num quarto alugado na cidade. Margarida tinha nos olhos toda a tristeza do mundo. Mas fazia de conta que não havia espera, que não havia marido, que não havia cidade. E era tão verdadeiro o fingimento que ela arriscava deixar de existir. Era, então, que o seu menino a salvava. Penteava a mãe, dizia, para que ela nunca morresse. Contrariava assim os pedidos que a progenitora dirigia a Deus, encomendando-lhe doenças avulsas. Por via dos cuidados, a mãe ficava imune a essas encomendadas maleitas. Mais do que curada: Margarida Maralto tornava-se eterna”, escreve Mia.

Além da beleza estética, sobressaem nas cinco páginas do conto a potência da voz feminina e a ignorância da cor da pele dos personagens. Uma das doenças teimosamente antigas de que Mia tem tratado na passagem pelo Brasil é o racismo. Outro mal, de intensidade outra e mais recente, e que o escritor de 68 anos tem encarado, é a armadilha do lugar de fala e do politicamente correto na criação artística. Ele alerta para o perigo de se “tratar o preconceito de forma preconceituosa”.

O escritor José Eduardo Agualusa dedicou uma coluna no GLOBO à queixa do amigo, ao Correio da Bahia, de que “hoje, tenho medo de falar”. “Mia referia-se ao medo sentido por muitas pessoas de escreverem ou dizerem algo que possa encolerizar milícias fundamentalistas, de modelo norte-americano, que se atribuem o direito de desautorizar o uso de certas palavras, tidas como tendo o poder de atrasar a construção de uma nova ética global”, escreveu.

Em discussão de significado maior que o tom episódico possa sugerir, Mia revelou a tentativa de censura à fala de um personagem em um romance passado no fim do século XIX. Nele, um general português insulta um moçambicano, chamando-o de “preto maldito”. Seria politicamente incorreto, argumentaram tradutor e editor, que sugeriram, sem sucesso, a substituição por “excessivamente pigmentado”, mantendo o “maldito”.

— O personagem era um colonizador brutal. O que me propuseram era contra a literatura, uma tentativa de se remendar o racismo. Palavras anteriormente usadas com carga ofensiva às pessoas, destinadas a magoar o outro, precisam, sim, ser interrogadas. Mas, em nome da seriedade dessa luta, não se pode ridicularizar aquilo que de fato é — diz.

Luzes e trevas

Mia segue o raciocínio com um exercício de imaginação:

— Se na nossa conversa eu tivesse dito índio e não indígena, deveria se cancelar, anular tudo o que falei? Deveríamos deixar em segundo plano as ideias aqui discutidas? A tolerância com o erro passou a ser mínima e o cancelamento do outro é censura que não devemos admitir. Discutir o mundo inclui a possibilidade indesejada do erro. Ao buscar luzes, temos de ter o direito de errar.

Após enfatizar a condição de estrangeiro (“Vocês não precisam de meus conselhos”) e de branco em um país com imensa maioria de pretos, Mia celebrou a percepção do aumento da discussão antirracista no Brasil. Mas sugeriu que se atente não só para a experiência norte-americana, como também para o combate ao racismo em países africanos. Até 1975, diz, o racismo em Moçambique era “de uma agressividade brutal”. Ser cidadão pressupunha se falar português e ser católico.

— Não há, nas línguas moçambicanas, palavra para designar pessoa branca ou preta. Quando eu e meus companheiros, eles todos pretos, chegamos em um lugar em que nossa língua nativa é distinta, somos, em conjunto, “esses outros”. Obviamente, todos sabemos que sou branco, mas a cor não é fator determinante de identidade— diz.

Durante a Guerra de Independência, o jovem biólogo e futuro escritor teve de passar por um teste para integrar a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Era o único branco no local.

— Jamais questionaram a cor de minha pele, mas o que pensava sobre o país a se criar. Sabia, feliz, que seria comandado por gestores, médicos, professores, policiais pretos. Celebro esta consciência. Não realizamos tudo o que sonhamos desde então, a elite segue com muito e a maioria vive de mendigar da própria esperança, mas também agradeço por ter vivido num momento em que a construção do futuro pela maioria era mais urgente do que purismos identitários — diz.

O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto — Foto: Edilson Dantas
O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto — Foto: Edilson Dantas

Diário de bordo por estradas nacionais

Quando detectou um Brasil diferente daquele pelo qual havia se encantado inicialmente, Mia Couto também reconheceu ter migrado do estado de paixão para o de um amor de carne e osso em sua relação com o país idealizado:

— O processo, claro, começou antes do Bolsonaro e da pandemia. Foi uma aprendizagem de alguma coisa que só acontece depois do encantamento. As primeiras vezes em que vim, fiquei em estado de paixão pelo país e não enxergava a realidade brasileira, bem mais dura do que poderia pensar em um primeiro momento. Agora estou aprendendo a lidar com essas múltiplas dimensões que há no Brasil. E a continuar a manter o amor.

Dimensões que se refletem tanto na geografia (e nos universos que unem e separam Salvador de Ribeirão Preto, dois de seus destinos este mês no país) quanto na multiplicação de leitores locais da obra do escriba polivalente. Mia percorreu, afinal, e com sucesso, os bosques da narrativa experimental (“Terra sonâmbula”), da ficção histórica (“Mulheres de cinza”), dos contos (“O fio das miçangas”) e da poesia (“Poemas escolhidos”). E a maior parte de sua obra está publicada no país que agora atravessa.

Em Ribeirão Preto, conta, “aconteceu algo extraordinário”. Ele já havia visitado a cidade, mas não se lembrava. Mesmo. A certeza dos fãs foi tamanha, no entanto, que Mia, “um eterno desconfiado de qualquer autoridade, especialmente de minhas próprias lembranças”, concluiu estar errado.

— Foi há 12 anos, num evento em que compareceram 30 pessoas, provavelmente cooptadas (risos). Desta vez, nos encontramos num teatro lotado de 1.200 lugares. E é claro que me comovo, mas queria que os livros fossem mais importantes do que o autor. Percebo que há quem não leu as obras e sim trechos reproduzidos no mundo digital. “Gostei muito daquela frase”, me dizem. Claro, isso é bom, tem a capacidade de trazer o leitor para seu universo. Mas o fragmentado também pode ser o caminho da incompreensão. E não quero deixar de ser escritor para me tornar frasista — diz.

Menos de birra e mais em serviço da exatidão, é possível destacar sentenças lapidares de Mia Couto em “As pequenas doenças da eternidade” sem exaurir o leitor. Algumas de muitas: “Nestes dias, não se pode confiar em ninguém, as pessoas não sabem o que trazem dentro delas”; “Ele julga escutar Virginia Woolf, o que ela lê é um manual de autoajuda”; “Era noite, o menino abriu a boca e a lua entrou inteira no seu corpo”; “As paredes dançavam à luz de velas espalhadas nos cantos da igreja”.

Caos absoluto

—Sim, é claro que gosto de escrever coisas percebidas como bonitas. A beleza que se usa para escrever um livro é para tratar de qualquer coisa além do que está em si mesmo. E que fala, assim, com um outro mundo, outras pessoas — diz Mia.

No longo trajeto de carro (após um problema com o avião que o levaria para a capital) entre Ribeirão e São Paulo, o escritor foi anotando em seu bloco de notas ideias nascidas de conversas com motorista e parceiros de viagem. O enredo ainda é misterioso, mas os personagens seguem em sua mente durante a passagem pelo Brasil. E serão, diz, seguro, invariavelmente influenciadas pelo que está aqui vivendo.

—É como se tivesse um amor secreto e estivesse sempre a pensar nele, e a correr, fora dos compromissos, a ter com este amor — diz. — É uma opção este meu método de escrita. não é mérito nenhum, me alimento do caos absoluto.

A criação literária é, crê, “a projeção do outro que está dentro do escritor”. Mia saúda a autocrítica na esfera política e social, ao denunciar, por exemplo, o próprio lema central da Frelimo na Guerra de Independência Moçambicana —“Libertar o Homem, com h maiúsculo” (“E as mulheres, não?”, pergunta, já respondendo). Mas seu processo criativo, frisa, não sofre com eventuais rédeas defendidas a título da ideia dos lugares de fala.

— A líder de um grupo de defesa dos direitos das mulheres, creio, deve necessariamente ser uma mulher. Mas, quando falamos de criação artística, não pode ser feito assim. Quando falo de uma mulher em meus livros, há verdade. A verdade de que quem está dentro de mim, a voz da minha mãe. Voz construída quando percebi que só poderia ser quem sou inteiramente se fosse, também, uma parte ela — diz.

‘As pequenas doenças da eternidade’. Autor: Mia Couto. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 169 Preço: R$ 64,90.

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