A história recente que explica o desmatamento da Amazônia não é uma trama fácil de contar. Ela requer o conhecimento detalhado da cultura e da geografia da região e ao mesmo tempo demanda compreensão de externalidades da política e da economia que a afetam. Construir uma ponte entre esses mundos distintos é um dos trunfos do novo livro de Míriam Leitão, uma das poucas jornalistas do país que navegam com desenvoltura e dedicação por essas duas frentes.
A colunista do GLOBO lança nesta quinta-feira (31), às 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, “Amazônia na encruzilhada”, obra com título homônimo ao documentário que produziu para a GloboNews. A ideia de produzir o livro, porém, antecedeu à do programa de TV e em 463 páginas Míriam consegue detalhar melhor sua explicação de como a floresta se viu presa numa lógica de exploração predatória, da qual algumas forças econômicas a tentam livrar agora.
— Eu estou há 20 anos trabalhando num ponto de encontro entre o ambiente e a economia, porque quero que a economia entenda as razões ambientais e quero que os ambientalistas entendam a lógica econômica — diz a autora, em entrevista em que contou sua motivação para escrever.
![A colunista do GLOBO Míriam Leitão — Foto: Rafaela Cassiano](https://s2-oglobo.glbimg.com/Floz2Dr0KlL87zmNb7k0x5Bt-bA=/0x0:1280x1089/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/w/K/S4PRpKQdCYFrbEKzNfHw/100484108-a-jornalista-miriam-leitao-autora-de-o-menino-que-conhecia-o-fim-da-noite-rocquinho.-c.jpg)
Urgência climática
Para ela, no entanto, o resultado do diálogo entre os dois mundos tem um rumo certo a ser tomado, porque a floresta está chegando perto daquilo que os cientistas chamam de ponto de não retorno: um limiar a partir do qual o bioma fragmentado não teria mais condição de existir. A urgência se impõe tanto porque o desmatamento emite o CO2 (chamado de gás carbônico), pivô do aquecimento global, quanto porque a própria floresta sofre com a crise do clima.
— Eu ouço os dois lados, mas nessa conciliação eu sei quem é que tem que ceder: é a economia — diz. — O recado da urgência climática é muito mais forte do que qualquer lógica econômica.
Para um livro sobre uma região ainda 80% coberta por floresta, “Amazônia na encruzilhada” traz alguns personagens inusitados. Há menções a presidentes de bancos, operadores de fundos de investimentos, ministros da Economia e da Fazenda.
Míriam conta de que forma o desmatamento surgiu como força avassaladora há mais de quatro décadas, movido não só por um agronegócio que demandava mais terras, mas também por uma lógica de especulação fundiária que incentivou a apropriação indevida de terras públicas. A grilagem, em meio século, se tornou instituição amazônica tão emblemática quanto o açaí e a castanha.
A história desse período tem um ponto de inflexão quando o governo federal cria o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDam) em 2004, que com “comando e controle” reduz em 80% a taxa de corte raso da mata. Míriam dimensiona a importância do projeto quando o chama de “O Plano Real do desmatamento”. Após 2015, o desmate volta a subir, e explode quando é implementada a política de relaxamento da fiscalização, que o ex-ministro do Ambiente Ricardo Salles apelidou de “ir passando a boiada”.
Míriam mostra os bastidores da construção dessa operação, com figuras menos ligadas ao tema ambiental. Um hesitante Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, aparece por exemplo tentando conter a reação dos mercados internacionais à destruição da floresta, mas desiste de confrontar a política do ex-presidente Bolsonaro para o setor.
Alguns banqueiros até que tentaram, ela conta, sem muita insistência, e também sem sucesso. E o otimismo da colunista para a Amazônia com a mudança de gestão no Planalto é expresso de maneira cautelosa, porque o motor econômico da destruição segue ligado.
Quem esperar de Míriam um relato apurado só em gabinetes de Brasília e escritórios na Faria Lima, porém, se surpreende com o que mais enriquece a narrativa: aquilo que a jornalista vê viajando centenas de quilômetros pela floresta e os depoimentos de dezenas de habitantes da região que vivem por dentro a sua realidade.
— Eu sou repórter. Eu gosto de ir para a rua — conta a jornalista. — Ir para a rua dá um medo danado. A gente tem medo de não conseguir pegar todas as informações que precisa, tem medo de não convencer o editor de que aquela história é boa. O repórter fica o tempo todo fora da zona de conforto, numa sensação ao mesmo tempo de angústia e de alegria. Minha alegria é por saber que ali eu estou na raiz da minha profissão.
Na pata do boi
“Amazônia na encruzilha” opta por contar a história da exploração da Amazônia seguindo a “pata do boi”, expressão incorporada pela própria autora. Esse é o motivo que a leva a São Félix do Xingu, o município amazônico que mais emite gases de efeito estufa por desmatamento no país, e abriga o maior rebanho bovino.
Os pecuaristas, bons ou maus, têm em mãos decidir o futuro da região. Há desde o fazendeiro que busca certificar seu gado e ajudar a preservação da floresta até o outro, acusado de grilagem, que se elegeu prefeito do município. Míriam retrata todos os tipos.
Quando entrevista os pequenos produtores e líderes comunitários que buscam uma virada ecológica e econômica na região, a jornalista não se furta a mostrar algum otimismo, apesar do recado de tom pessimista dado pela ciência.
— Em pleno governo Bolsonaro, essas pessoas resistiam na defesa da floresta. É impossível não se envolver e não se emocionar — diz Míriam. — Elas sonham, elas querem um futuro diferente e elas acreditam nele. Sou eu quem vai dizer que não acredito nelas?