A orelha de “Bioy e Borges: obra completa em colaboração” conta que a parceria entre dois dos maiores escritores latino-americanos começou de maneira despretensiosa. O que deveria ser um folheto publicitário se tornou uma coletânea surreal e completamente fictícia a respeito dos benefícios da coalhada búlgara e de famílias centenárias cuja longevidade foi conquistada graças a seus hábitos alimentícios. Essa gênese soa como uma história absurda e, portanto, pertinente, uma vez que a mistura de irreverência e erudição do texto, assim como seu descaso para com os limites entre realidade e ficção, representa perfeitamente o que se encontra no restante dessa obra conjunta.
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Assinados por pseudônimos da dupla, os textos recolhidos neste volume não são reconhecíveis como de Jorge Luis Borges nem de Bioy Casares, nem mesmo como de uma mistura dos dois. Eles falam com uma terceira voz na qual se pode até identificar elementos das obras separadas dos autores argentinos, mas é impossível demarcar onde começa um e termina o outro, o que cada um deles trouxe para as obras, ou mesmo o que restaria se removêssemos um deles.
Os primeiros contos da coletânea vêm do livro “Seis problemas para Isidro Parodi” (1942), e neles um detetive improvável resolve mistérios que desconstroem comicamente as clássicas histórias policiais.
Em “As noites de Goliadkin”, por exemplo, o leitor é remetido inevitavelmente ao “Assassinato no Expresso do Oriente”, de Agatha Christie, mas aqui a trama e a revelação final não são elegantemente orquestradas, e sim desconjuntadas e hilárias, como se os personagens fossem regidos não pelo gênio dos criminosos sutis e detetives perspicazes que costumam habitar o universo policialesco, mas por acasos da vida humana. Parodi não é nenhum Sherlock Holmes desvendando crimes perfeitos, mas uma figura muito argentina e muito tragicômica.
“Duas fantasias memoráveis”, “Um modelo para a morte” e “Os suburbanos/O paraíso dos crentes”, obras que se seguem aos problemas de Isidro Parodi, abandonam o modelo policial e se aproximam das temáticas metafísicas e referências bíblicas que marcam as obras separadas dos autores. Mas o tom continua peculiar: o narrador destes textos, B. Suárez Lynch, é tão prolixo e barroco quanto autoconsciente, em um desencontro cômico que talvez só seja possível por se tratar dessa entidade desencarnada que se separa de seus criadores.
Embora abandonem a literatura de entretenimento como tema e olhem para a elaboração filosófica, esses textos continuam engraçados. Há neles um desrespeito fundamental em relação ao que se chamaria de filosofia séria ou mesmo à solenidade muitas vezes associada à criação literária. São experimentos, investigações, uma brincadeira, profundos em sua rebeldia.
O volume também apresenta as crônicas de Bustos Domecq, que, junto com os contos policiais de “Seis problemas para Isidro Parodi”, levam ao extremo o projeto de desconstrução irreverente da tradição literária. Nessas crônicas, Domecq analisa a obra de outros diversos autores — todos ficcionais.
Embora todos os livros tragam prólogos e prefácios que apresentam a biografia de Domecq, aqui ele ganha um gosto, um estilo e também um quadro teórico enquanto crítico literário. A “entidade colaborativa” pensa e analisa literatura de uma forma própria, mais uma vez diferente da de seus criadores em separado.
Nos contos que se seguem às crônicas, os autores parecem ancorar um pouco mais a verborragia de Domecq na realidade. São histórias menores, mais carnais em suas temáticas.
Em posfácio que acompanha esta edição, Davi Arrigucci Jr. relaciona a violência de “A festa do monstro” ao clima político argentino da década de 1940. Essa ponte com o mundo de fora da literatura — que também está no submundo de “Seis problemas...” — dá corpo ao que poderia ser um projeto apenas de experimentação formal.
Domecq, que além de ter uma relação desrespeitosa com o cânone possui uma existência híbrida, pergunta o quão importante realmente é a materialidade de um autor. É o Cervantes de carne e osso mais importante que Dom Quixote? Ou, ainda, será que a relação que os leitores da obra estabelecem com um espanhol do século XVI não é tão ficcional quanto a que podem ter com uma criação como Domecq? Essa voz única, e real nas palavras da página, é menos real que Bioy e Borges quando escrevem separadamente?
Domecq, seus personagens e os autores analisados por ele se tornam reais na medida em que são escritos — e é essa a proposta mais radical dessa colaboração: a possibilidade de fabricar realidade com literatura.
* Isadora Sinay é crítica literária, tradutora e autora do livro “Você não deve esquecer nada”